Coringa: Delírio a Dois – Por que tão difícil de engolir?

Coringa (Joker, 2019) foi um filme extremamente “ame-o ou odeie-o”, levantando toda uma polêmica sobre a relação cinema-violência e como problemas sociais expostos para crítica em um filme podem acabar incitando atos de uma comunidade violenta, neste caso a comunidade incel. O mesmo aconteceu com Taxi Driver (1976), por exemplo, em sua época, essa conversa vai e volta como várias outras na indústria do entretenimento. Eu gostei de Coringa, mas entendo e acho válidas todas as críticas que foram levantadas sobre a obra, independente da minha opinião. Agora, inesperado realmente foi a polêmica de Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux, 2024) ter sido “mexeram no meu Coringa :(“.

Caso queira ler antes, temos um texto sobre Coringa de 2019 aqui e um episódio do SMUPS aqui.

Coringa: Delírio a Dois é continuação direta do filme de 2019 e finaliza essa duologia. Definitivamente. É sério. Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) agora está aguardando seu julgamento enquanto está internado no Asilo Arkham. Lá, ele conhece Lee Quinzel (Lady Gaga), por quem se apaixona e engatam um relacionamento enquanto um movimento popular contra a elite de Gotham e a favor da absolvição de Arthur se espalha pela cidade. Quando o julgamento começa tudo isso se mistura na cabeça do nosso protagonista enquanto ele vive em um mundo de fantasia.

Assim como o primeiro filme, este é dirigido por Todd Phillips, diretor também da franquia Se Beber Não Case, e escrito por ele e Scott Silver. Lawrence Sher, que trabalhou em Adão Negro (Black Adam, 2022) e Cães de Guerra (War Dogs, 2016), e Hildur Guðnadóttir, que trabalhou em Entre Mulheres (Womem Talking) e A Noite das Bruxas (A Haunting in Venice, 2023), também retornam para fotografia e trilha sonora, respectivamente.

Belíssimo

Tirando o básico da frente logo, este filme é lindo visualmente. Todd Phillips tem um olhar muito intimista sobre suas personagens e consegue filmá-las primorosamente, a trilha sonora é igualmente bonita e consegue dar o tom certo para os momentos, mas isso tudo já sabíamos por ter visto o filme anterior. 

O elenco também mantém um nível alto, Joaquim Phoenix consegue ir da obsessão para a vulnerabilidade e depois para a raiva de um modo muito fluido e talvez esta atuação renda mais alguns prêmios para ele. Sobre Lady Gaga vou falar em um tópico específico, mas todo o elenco de apoio se sai muito bem com destaque para Jacob Lofland como Ricky Meline e Connor Storrie como um interno sem nome do Asilo.

No entanto, sua montagem é uma grande questão, mas falo sobre isso mais para frente.

Todd Phillips nos enganou descaradamente?

Pelo que eu entendi e vi, até mesmo depois de sair da cabine de imprensa deste filme, é que as pessoas ficaram decepcionadas porque o Coringa do filme não era “o” Coringa que elas esperavam. Não era o que eu gosto de chamar de “Coringa do casaco roxo”, que seria o retratado em A Piada Mortal, Batman: A Série Animada (Batman: The Animated Series, 1992–1995) e que foi interpretado por Jack Nicholson e Heath Leadger, basicamente o Coringa considerado canônico, oficial. Porém a realidade é que por mais parecidos que sejam essas personagens, não são a mesmo personagem.

Vi muitas pessoas dizendo que se apegar ao quadrinho vai te fazer odiar esse filme, que você tem que abstrair os quadrinhos para gostar e eu acho isso uma besteira. Estamos falando de um personagem que não tem origem oficializada, por mais que a versão de Alan Moore seja muito querida e aclamada. Não é nem porque a DC Comics faz mistério da origem, ela simplesmente não existe! 

Mesmo que existisse, o que mais passa por reboots e novas abordagens são as origens e interpretações de vilões de quadrinhos. Já houve uma período da DC que existiam três Coringas ao mesmo tempo, e sinceramente, as melhores versões dessa personagem para mim vieram nos últimos anos e são o Coringa de Batman Cavaleiro Branco, minissérie sobre um universo alternativo que foi prolongada e ainda é publicada, e O Batman Que Ri, que na verdade é um Batman, mas na prática é um Coringa, introduzido no evento Noite das Trevas: Metal nos quadrinhos. Não entendi a dificuldade de entender essa duologia como um Elseworlds, termo que veio dos quadrinhos e James Gunn já usou para descrever os filmes de Todd Phillips e de Matt Reeves, histórias fechadas e sem relação com a cronologia principal.

O Coringa de Matt Reeves já vai ser totalmente diferente deste ou do “Coringa de casaco roxo”, mas ele não leva hate por isso. Inclusive, enquanto escrevo este texto ainda está sendo lançada a série Pinguim (The Penguim, 2024-), do universo que Matt Reeves criou, e nessa série temos novas versões do Pinguim e de Sofia Falcone. Mas estes dois não sofrem essa rejeição só por serem personagens menores? Não, é por expectativa. Ninguém liga para uma personagem como Sofia Falcone, é fácil mexer em sua história e adequá-la ao que se quer por mais que ela também tenha décadas de história, ela gera menos expectativa, enquanto colocar a palavra “Coringa” em um pôster já gera expectativa até demais.

Todd Phillips, no entanto, mostrou e deixou bem claro que essa história se passa no universo do Batman, mas nunca disse que seu Coringa era o do casaco roxo. Se fosse, ele teria mostrado e deixado claro. Sim, temos easter eggs e fanservices, mas o do casaco roxo precisa do Batman para existir e ele ainda não existe, fora terem idades razoavelmente próximas, sendo pelo menos dois adultos. Este Coringa de casaco vermelho usa dois conceitos que eu gosto, o Coringa como uma ideia e do dia ruim – cunhado em A Piada Mortal, onde o Coringa defende que o que o separa do Batman ou do Comissário Gordon é isto: um dia ruim -, Arthur Fleck não precisou de um Batman, ele precisou de um dia ruim.

(agora conte quantas vezes eu escrevi a palavra Coringa nesse tópico).

A grande reinvenção do musical?

Eu sou uma hater declarada da dancinha do serial killer, a dancinha do vilão ou dancinha do assassino. Eu a odiei em Morbius (2022) mesmo sendo feita pelo Matt Smith e a odiei também em Saltburn (2023) mesmo senda feita pelo Barry Keoghan e dirigida pela Emerald Fennell, mas em Coringa de 2019 eu amei. Eu acho que lá existe toda uma trajetória interna representada pela dança e quando a cena da escada acontece, ela não é por uma conquista, é por uma libertação. Então fiquei curiosa, mas não surpresa, quando surgiram os rumores sobre Delírio a Dois ser um musical, tipo, chamaram a Lady Gaga né?! Seria um desperdício! 

No entanto, como aparentemente musicais estão em um momento persona non grata, banidos e indesejados, para o público – algo que sinceramente não entendo – não apenas tentaram esconder que o filme é um musical como ficaram tentando dar voltas para dizer que não era. Todd chegou a dizer que é um “filme onde a música é essencial” ou que acontecia em momentos introspetivos “representando a confusão mental” e Gaga disse que “a música é usada para dar aos personagens uma forma de expressar o que precisam dizer quando o diálogo não é suficiente”. E o pior é que agora as pessoas estão nesse joguinho para tentar dizer que o filme não é um musical, mas vou contar um segredo para vocês: ele é um musical, sinto muito se isso te incomoda. Tudo isso que disseram, não só não é novidade como apenas descrevem musicais, inclusive a fala de Gaga é basicamente uma fala de Howard Ashman para dizer como as músicas devem começar em MUSICAIS!

Caso você seja uma pessoa chata e queira contestar este fato, o próprio Todd Phillips em uma entrevista presencial em que o Nerd Bunker esteve admitiu que sim, o filme é um musical e ele tentou evitar esse termo por achar que se referia a obras leves e divertidas. Vocês podem ler sobre a entrevista bem aqui.

Colocando esta questão de lado, preciso dizer que este filme tem músicas demais. A trilha musical não é composta por músicas originais e sim por covers, versões novas de músicas que já existem, todas muito bem encaixadas e que fazem sentido com as situações, muito bem complementadas pelas interpretações de Joaquim e Gaga. O conceito da música como os momentos de fantasia é muito bem usado, especialmente quando em alguns momentos elas são cantadas de fato no mundo real, mostrando que a fantasia está invadindo a realidade e se misturando a ela.

Só que estamos falando de um filme de duas horas e vinte com umas 15 a 20 músicas. Wish: O Poder dos Desejos (Wish, 2023) musical mais recente da Disney tem uma hora e trinta e cinco minutos duração e 7 músicas. Essa é a média de tempo e de músicas dos musicais da Disney, que eu assisto com frequência, então acredite em mim quando eu digo que em Delírio a Dois as personagens simplesmente cantam o tempo inteiro, não param de cantar. Várias dessas músicas poderiam se selecionadas e ficar de fora.

Lady Gaga e sua Arlequina

O papel da “Arlequina” deste filme, tinha que ser da Lady Gaga. Ela é incrível e não tinha como outra pessoa interpretar esse papel, ela é linda, ela canta e ela entrega tudo e mais um pouco. Isto posto, a personagem é estupidamente subaproveitada. O material promocional do filme parecia bater muito na tecla de que esta era uma história de amor, o que nos faz imaginar que as duas personagens principais teriam a mesma importância, certo? Errado.

Lee é usada de uma forma que, como fã da Arlequina, me incomoda um pouquinho, mas tentando não cair no que eu mesma critiquei mais acima, tentei abstrair, mas ainda é um tratamento bem questionável para uma personagem feminina. Por vezes, Lee é retratada como uma vilã, como uma catalisadora da loucura de Arthur que o faz piorar e se render mais e mais à fantasia que ela representa e idealiza. Apesar de às vezes essa loucura se retroalimentar, ela não deixa de estar muito mais próxima do arquétipo da mulher como tentação do que qualquer outra coisa, dando ares de “olha como ela faz mal para ele”. O relacionamento dos dois é muito mais uma degradação do que um engrandecimento e acho que faz sentido com o que foi colocado no filme, mas a personagem deixa de ser uma coadjuvante para se tornar mais um recurso de roteiro.

À sombra de outro filme

Como uma continuação, é óbvio que este filme será afetado por seu antecessor, mas ele também o afeta de modos diferentes do esperado. Não dá para ignorar toda a polêmica que cercou o primeiro filme, ela permeou todas as discussões, críticas e premiações. Com certeza boa parte da bilheteria veio desse burburinho, mas não foi aquele burburinho legal que Barbie (2023) e Oppenheimer (2023) tiveram, foi controverso, negativo até.

Coringa: Delírio a Dois acabou se tornando um filme picotado que parece ter sofrido com várias mãos e opiniões se metendo em seu desenvolvimento. Muitas imagens e cenas presentes no material promocional sequer aparecem no resultado final e dá para sentir a edição truncada em alguns momentos.

De um lado temos Todd Phillips querendo fazer um filme na verdade muito corajoso, afinal, além de um musical, critica o seu próprio antecessor de grande sucesso, talvez em uma resposta as críticas (muito válidas) e uma mensagem clara aos incels sobre a violência? Possível. Mas do outro lado temos a Warner e sabemos muito bem que ela não precisa de muitas justificativas para meter a mão em suas produções. Muitas visões e opiniões brigam para se mostrar no filme, me lembrando um pouco Star Wars: A Ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX – The Rise of Skywalker, 2019) que foi um filme medroso e ruim depois de um filme corajoso e lindo que gerou muitas críticas na internet.

Ser idolatrado ou ser amado

O cerne da personagem de Joaquim Phoenix está em querer amar e ser amado, acima de qualquer coisa. Neste momento em Gotham, ele tem amor até demais, porém este amor não é para Arthur, é para o Coringa. Ele quer esse amor, mas essa multidão que clama por seu nome não o ama, ama seu alter ego, ama o que ele representa.

Durante o julgamento, que, diga-se de passagem, força personagens e audiência a reviver tudo aquele sofrimento de novo, ele decide abraçar e se afogar neste papel que lhe foi dado. Acaba que a fama é a grande vilã do filme, o vilão é atribuir tanto significado a um ser humano falho e quebrado. Arthur vai se perdendo na fantasia, na personagem, na performance. É quando ele percebe que não está sendo amado e aclamado por si, e o que ele está representando não é algo bom, o encanto se quebra. No momento que ele decide não ser mais a personagem, sua plateia literalmente se levanta e vai embora, sem se importar.

Me faz lembrar artistas, celebridades e influencers, com legiões de fãs que nunca os entenderão de verdade, dispostas a defendê-les de atrocidades ou larga-les ao menor sinal de não serem a pessoa idealizada, de não serem essa personagem construída pela mídia.. Muitas vezes também pode levar essas pessoas à morte, seja por suas próprias mãos ou pelos de outros. 

Aqui a própria ideia do filme se volta para nós como audiência, rejeitando Arthur Fleck por ele não ser o Coringa que se esperava, sendo que ele nunca nos disse que era isso que seria ou que queria ser. Se vimos o Coringa nascer no primeiro filme, no segundo vemos Arthur Fleck ressurgir das cinzas, mas não é ele quem as pessoas querem, não é ele quem as pessoas amam.

Deixando de lado as músicas em excesso e a Arlequina mal aproveitada, a história faz sentido e chega ao seu único fim possível, com a violência completando seu ciclo. Não era o encerramento que as pessoas queriam, mas é um fim realista e condizente com que foi proposto. A arte também está aí pra incomodar, não só pra agradar, e Coringa parece que não agradou e ao fazer isso, cumpriu seu objetivo. 

Vejamos se Matt Reeves consegue continuar agradando ou se vai ser o próximo a cair em desgraça.


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