Oppenheimer – “Agora eu me torno a Morte, o destruidor de mundos”

As adaptações biográficas são um dos subgêneros mais comuns do drama e talvez as mais lembradas no circuito de premiações. Muito porque exige não só uma entrega maior dos atores e atrizes em seus respectivos papéis, como também um cuidado maior dos roteiristas e diretores para filtrar o que deve ser contado a fim de capturar a essência da personalidade da pessoa retratada. Com tantas histórias de personalidades sendo contadas, cair no senso comum é inevitável, gerando um desafio para os cineastas atiçarem a curiosidade do público indo além do que o subgênero pode oferecer.

É assim que o longa produzido pela Universal Pictures, Oppenheimer (2023) sai totalmente fora da curva para entregar uma obra apoteótica que conta a história de Robert Oppenheimer, o criador e pai da bomba atômica. Baseado e Inspirado no livro de Kai Bird e Martin Jay Sherwin “American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer” (“Prometheus Americano: O Triunfo e a Tragédia de J. Robert Oppenheimer”), o filme narra a trajetória do brilhante físico desde sua trajetória acadêmica passando por Universidades como Harvard, Cambridge, Göttigen e Berkeley até seu envolvimento com o “Projeto Manhattan”.

Nas mãos de um diretor comum, esta biografia seria apenas uma narrativa sobre a pessoa que construiu a bomba atômica, mas nas mãos do talentoso Christopher Nolan, que escreve e dirige a obra, o filme se torna uma experiência diferente de tudo que você já viu em termos de cinebiografia exatamente por trazer uma imersão única quando nos aprofundamos na mente de um cientista apaixonado por ciência, engolido pela ambição de um grande projeto e posteriormente atormentado pelas consequências de seus atos.

É assim que a trama de Oppenheimer foge do senso comum para entregar uma experiência cinematográfica que só o Nolan é capaz de oferecer. A obsessão do diretor por detalhes e minimalismo cria uma obra densa que mistura drama tradicional, mas flerta com outros gêneros, nos levando a uma montanha russa de emoções transformando o texto muitas vezes num thriller urgente, misturado com terror psicológico, evidenciando uma mente hiperativa e inquieta de um cientista em busca de provar suas teorias. 

O filme não é uma experiência fácil, com três horas de duração é preciso paciência e comprometimento, só desta forma que o expectador é recompensado com uma narrativa que surpreende a cada cena, no melhor estilo Nolan, tudo explicadinho e detalhado, com três linhas temporais que carregam sua audiência entre o antes, durante e depois da construção da Bomba Atômica. Inclusive este depois é conduzido através de charmosas sequências em preto e branco filmadas pela primeira vez em IMAX na parte investigativa em meio a paranoia da Guerra Fria, que dá um tom documental e onde a trama política ganha corpo antes de tomar a frente do espetáculo na reta final.

O conjunto da obra em Oppenheimer é algo notável, além da direção precisa de Nolan, a trilha sonora do ganhador do Oscar, Ludwig Göransson, funciona como uma segunda mão condutora, conseguindo trazer urgência e antecipação para o público até o primeiro teste da bomba, além de trazer lirismo e uma aura totalmente abstrata para representação da mente de Oppenheimer, onde inclusive Nolan flerta sua obra com um surrealismo mostrando que a ciência funciona de forma expansiva, misteriosa e filosófica mesmo utilizando matemática e física quântica como base concreta para atingir seus objetivos mundanos.

E o filme não para por aí, se Ludwig é a segunda mão condutora, a montagem de Jennifer Lame é a regente que faz o roteiro funcionar de forma ordenada com cortes precisos e eficientes, mesmo com uma gritante quantidade de informações técnicas e políticas que transitam na tela na conversa entre cientistas, militares e políticos. O expectador nunca se sente perdido ou subestimado, mas instigado a saber mais sobre todos os problemas, progressos e resoluções do Projeto Manhattan resultando na sequência mais espetacular do filme, o teste da Bomba, que pode sim deixar alguns indiferentes ao resultado, mas com certeza deve ser um presente para que ama aspectos técnicos do cinema de arte tamanha a precisão da execução de Nolan com efeitos práticos. 

É claro que tudo isto, não seria possível se o elenco não estivesse à altura da ambição narrativa proposta pelo diretor. O ator Cillian Murphy foi a escolha perfeita para viver J. Robert Oppenheimer, intercalando uma atuação que equilibra as ambições de um gênio louco e obsessivo, que se perde dentro da sua própria mente em divagações, enquanto tenta conciliar seu lado cientista com seu lado político. Murphy consegue em alguns momentos humanizar a figura do físico, tornando-o um personagem cheio de falhas, mas complexo e difícil de realmente entender. 

Esse lado mais humano de Oppenheimer, acaba sendo a parte mais polêmica da obra e também o calcanhar de Aquiles de Nolan, pois as personagens femininas acabam aparecendo apenas como muleta narrativa em meio a um mundo masculinizado. Emily Blunt, que vive Kitty Oppenheimer, mesmo com poucas cenas, consegue seu momento para brilhar em um dos monólogos mais inspirados do filme, méritos da atriz que entrega uma atuação tocante. Infelizmente Florence Pugh no papel da amante de Oppie, Jean Tatlock, é desperdiçada, não pela polêmica cena de sexo, mas por não ter espaço numa obra que foca bastante no ponto de vista do cientista.

O resto do elenco funciona, pois, ciência e política são os pontos fortes do filme, desta forma Matt Damon, Alden Ehrenreich, Kenneth Branagh, Josh Hartnett, David Dastmalchian, Dane Dehaan e Benny Safdie, são participações de luxo que acrescentam bastante à história e mostra que atores com um bom texto na mão, conseguem render muito mesmo com momentos breves, porém marcantes. É desta forma que a atuação de Robert Downey Jr. no papel do influente Lewis Strauss se torna um caso a parte, talvez a única atuação que consiga igualar ao nível de performance de Murphy, criando um antagonista inescrupuloso, vil e inteligente na medida, resultando no melhor papel da carreira do ator. 

É baseado nestes aspectos positivos que Oppenheimer se torna uma obra indispensável, que fica ainda melhor quando consegue equilibrar bem o embate entre ciência e militarismo evidenciando um jogo político sujo que transforma a figura do cientista ao longo do Projeto Manhattan, em uma figura política que acaba sendo engolido pela ambição do governo estadunidense servindo de peça para terminar uma guerra da forma mais sangrenta possível. 

O filme ganha pontos por usar suas peças narrativas sem precisar mostrar cenas de forma explícita. A sequência em que Robert Oppenheimer é parabenizado pelo sucesso das bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki é um dos momentos mais assustadores, banais e emblemáticos que você vai ver numa narrativa, onde Nolan, auxiliado pela fotografia assombrosa de Hoyte Van Hoytema, afoga seu protagonista num mar de culpa e terror com peso do mundo em suas costas, inclusive justificando através da linguagem do cinema sua frase mais famosa.

Desta forma, por tudo que foi mencionado, Oppenheimer é uma obra prima que merece toda bilheteria e prestígio que anda recebendo. Um drama tradicional com ecos de blockbuster, com um elenco de peso com atuações exemplares, com aspectos técnicos impecáveis que ajudam a trazer uma imersão que torna essa cinebiografia uma das melhores já feitas. 

Ao transitar entre gêneros para mostrar a história do cientista que foi responsável pelo divisor de água que mudou o mundo que conhecíamos até então, Christopher Nolan nos presenteia com seu trabalho mais maduro como cineasta mostrando que o cinema pode ser reinventado, onde o drama mais denso e longo, pode atrair milhões de expectadores em uma amálgama entre o filme de arte e o filme pipoca, que resulta numa obra não menos que monumental.


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