Wish: O Poder dos Desejos – Entre ser alguma coisa e ser coisa nenhuma

Não é segredo para ninguém que me conhece que eu sou uma adulta obcecada pelas animações da Disney e quando começaram os anúncios do filme que comemoraria 100 anos do Walt Disney Animation Studios, eu deveria ter ficado super empolgada, mas não fiquei. Eu não entendi bem quais eram as intenções do filme e sobre o que ele seria, acabei criando um ranço que tive que me desfazer completamente antes de ir para a cabine de imprensa de Wish: O Poder dos Desejos (Wish, 2023). No fim, a experiência não foi a de alguém que vai ao cinema com altas expectativas que não foram atendidas, mas de alguém que foi sem nenhuma expectativa e assistiu a um filme que poderia ser incrivelmente maravilhoso, mas não é. Ele quase é. 

Sendo bem sucinta para quem quiser se livrar logo desse textão: Wish é um filme legal, é um filme bonito e é um filme divertido, o problema é que poderia ser muito mais do que isso. Se essas pequenas informações bastam para você assistir, assista! 

Mas se você quer saber um pouco mais sobre o que eu estou querendo dizer, segura aqui na minha mão e vamos conversar sobre esse filme.

Uma homenagem digna de 100 anos

Quando Wish foi anunciado, todo o marketing fez questão de ser o mais intenso possível. O filme não seria apenas o filme que sairia no ano em que o estúdio faria 100 anos, seria uma grande homenagem ao estúdio, a toda sua história, todos os seus filmes até então, conectaria tudo e muitas outras coisas. Ou seja, jogaram as expectativas lá no espaço! A empresa já teve outros filmes comemorativos, mas nenhum carregou todo esse peso, por exemplo, Enrolados (Tangled, 2010) foi 50ª animação da Disney, mas não teve nenhum conceito parecido, no máximo ele marca o momento em que o estúdio largou a animação 2D pela 3D. Apesar de aparentemente quererem voltar atrás com isso agora.

Eu sei o hype que essa estratégia criou no público, mas não gosto nem de pensar na pressão que foi colocada em cima das pessoas envolvidas no projeto. Afinal, como fazer essa homenagem? Como condensar 100 anos de história de um lugar que lançou o primeiro longa-metragem musical de animação? Um lançamento tão radical que fez o produtor do filme e dono do estúdio hipotecar sua casa várias vezes para conseguir pagá-lo, sem saber se daria retorno e culminou em uma empresa que na verdade podemos chamar de um grande império. Com centenas de produções, dezenas de personagens lembrados por gerações e com parques e cruzeiros temáticos mundo afora.

Isso por si só, já é um problema por afetar o filme como um todo, e provavelmente, junto com as inúmeras interferências feitas por executivos ao longo do processo, fizeram com que Wish fique entre ser um excelente filme e uma excelente homenagem, sem ser perfeitamente nenhuma das duas coisas, mas sendo quase elas e outras mais. É um filme quase fantástico, que é quase uma grande homenagem, com músicas quase memoráveis, onde você quase se conecta as personagens, onde você quase chora no final e quase trabalha bem as suas temáticas.

Eu sou sempre contra comparar muito filmes que não sejam parte da mesma franquia, adaptações, reboots ou remakes. Uma obra deveria ser boa por si só, mas com Wish bebendo tanto e tão abertamente das obras predecessoras do estúdio, vou quebrar minha regra e vou compará-lo com outros filmes em vários momentos. Também não sou muito de pensar coisas que o filme poderia ter feito, mas é uma obra com tantas boas ideias que são desperdiçadas que não vou me conter nisso também.

Quem é Asha?

Wish conta a história de Asha, uma camponesa de 17 anos que habita na cidade de Rosas. Um lugar conhecido por seu Rei Magnífico (atenção, nome próprio), um mago poderoso capaz de realizar desejos, mas não todos os desejos. Quando alguém que vive em Rosas completa 18 anos, ou se alguém com 18 anos ou mais se muda para lá, deve entregar para o Rei o seu desejo. Aquele desejo que te motiva, que te move, a sua razão de viver. Ao entregá-lo, você esquece o que era o desejo e o que te resta é esperar. Uma vez por mês uma cerimônia é realizada e o Rei escolhe um desejo para realizar na frente de toda a cidade, e é isto.  

Não, você não pensou errado. Rosas é uma cidade com algumas centenas de habitantes e alguns vão esperar a vida inteira para NÃO ter seu desejo realizado, e como não lembram o que desejaram, não podem realizá-los por conta própria. Na verdade, mesmo esquecendo, isso afeta as pessoas. Elas se tornam vazias, sem propósito, apáticas e a única chance de se sentirem vivas novamente é com o Rei realizando o desejo, então, elas esperam.

No entanto, tudo muda quando Asha descobre que Magnífico não pretende realizar todos os desejos. Ele seleciona os que considera inofensivos, que não vão afetar seu reinado e a estrutura de poder que ele estabeleceu em Rosas, enquanto os que ele considera “perigosos” ficarão para sempre ali com ele, guardados, como modo de controlar sua população.

Óbvio que Asha não concorda com isso e em uma noite, ela deseja tão fortemente para uma estrela no céu que as coisas mudem, que ela puxa essa estrela para o chão. Agora acompanhada de Estrela, Asha quer libertar os desejos do povo de Rosas, para que voltem para quem pertencem.

Sonhar é desejar

A temática do desejo/sonho/ambição é bem recorrente nos filmes da Disney. Branca de Neve canta que seu sonho é ser feliz, algo tão simples e ao mesmo tempo tão forte.

“Quem quiser realizar, aquilo que sonhou, basta o eco repetir, o que você falou. Um dia, eu serei feliz, sonhando, assim.” – Sonhando Assim, Branca de Neve e os Sete Anões

Cinderela conta que o sonho é um desejo, e pensar em realizá-lo pode te ajudar a passar por momentos ruins.

“Um sonho é um desejo d’alma, n’alma adormecer, em sonhos a vida é calma, é só desejar para ter. Tem fé no teu sonho e um dia, teu lindo dia há de chegar. Que importa o mal que te atormenta, se o sonho te contenta e pode se realizar.” – Sonhar é Desejar, Cinderela

Os objetos do castelo da Fera cantam emocionados quando pensam na maldição ser quebrada, poderem ser humanos novamente e fazerem coisas simples como se vestir e passar por uma porta.

“Ah chérie, já cansei de sonhar. Com o batom e o rouge, vou tirar a ferrugem, pela porta eu quero passar. Meu cabelo soltar, trajes finos usar, mas que bom ser humana outra vez!” –Humano Outra Vez, A Bela e a Fera

Gepeto e Tiana, separados por quase 70 anos, desejam com todo coração para a estrela mais brilhante do céu para que atenda seu pedido. E claro, a música Se Uma Estrela Aparecer/When You Wish Upon a Star, lá de trilha de Pinóquio (Pinocchio, 1940) é até hoje a melodia que toca na abertura de todos os filmes da empresa, naquela imagem do castelo. É uma temática mais do que apropriada e uma ideia genial.

Porém, assim como a maioria das ideias de Wish, fica no quase, na profundidade rasa.

Primeiro que com uma premissa dessas, o ideal seria que o filme começasse com algo no estilo, Asha está fazendo 18 anos e se recusa e entregar seu desejo. No meio ou no final do filme seu desejo poderia ser tomado dela, o povo poderia forçá-la a entregar, pois o Rei deu algum tipo de ultimato. Nada disso existe, o roteiro vai por outro lado.

Não se entra na temática de trabalhar para realizar seu desejo, como em A Princesa e o Sapo (The Princess and The Frog, 2009) que, além disso, também aborda questões sobre correr atrás de seu sonho, sem esquecer-se de dar valor ao que importa na sua vida, esquecer-se de viver ou sobre como o que vem fácil não ser tão gratificante, ou sobre o “querer” e o “precisar” serem coisas diferentes.

“Todos eles já sabiam, o que queriam me pedir, mas o que precisavam, era o mesmo que vocês têm que ouvir.” – Cavando Mais Fundo, A Princesa e o Sapo

Nem mesmo no que fazer depois do desejo ser atendido como temos em Enrolados.

“- Fiquei olhando pela janela 18 anos e sonhava com o que iria sentir quando visse aquelas luzes subindo no céu. E se não acontecer da maneira que eu achei que fosse?

– Vai ser.

– E se for, e daí? O que eu faço depois?

– Acho que essa é a parte boa. Vai ter que encontrar outro sonho.” – Rapunzel e Flynn, Enrolados

Qualquer coisa além do básico, o filme não vai. Magnífico poderia realizar os desejos, mas sob condições que fizessem o desejo servir somente a ele ou somente a Rosas. Seu desejo é ser construtor? Perfeito, mas você só vai construir para o rei. Quer ser pintora? Sem problemas, mas só vai pintar imagens do Rei. Mas eu nem preciso ir tão longe. O filme não nos mostra UMA PESSOA SEQUER que teve o desejo atendido. Fosse para mostrar uma pessoa extremamente feliz e isso motivaria todas as outras a esperarem ser atendidas, ou outra que simplesmente não está feliz nem satisfeita pelo motivo que for. O desejo não fez mais sentido depois de tantos anos, ou não fez sentido cair nas mãos dela tão fácil, sem uma jornada. Algo que motive essas pessoas a continuarem ali ou que motive questionamentos que venham a ser reprimidos e gere a perspectiva de que não é mais possível realizar o desejo sem o Rei. O máximo que temos de aprofundamento é em uma cena a população questionando os métodos de Magnífico.

Acabou que a ideia foi interessante, mas parece ter sido trabalhada de modos muito mais interessantes e palpáveis em pelo menos uns cinco filmes anteriores do estúdio.

Uma boa homenagem ou um bom filme?

Mantendo o ponto, o roteiro tem furos meio fáceis de perceber. Toda obra tem suas conveniências e aquelas coisinhas que no final você questiona, mas Wish começa com Asha fazendo uma entrevista para ser aprendiz de Magnífico e fica subtendido que ele já teve aprendizes. Porém, mais para frente, além de entendermos o medo de ser destronado, é dito que ninguém em Rosas pode usar magia, só ele. Qual o ponto dos aprendizes então? Não pode ser roubar a magia porque qualquer um pode aprender, então seria se livrar de quem tenha potencial mágico para que não o enfrente? Isso sou eu tentando preencher lacunas.

Sem dar tanto spoiler, Asha vê Magnífico basicamente barrar um desejo que tem a ver com música, pois poderia gerar pensamentos, ideias e incitar uma rebelião. Só que existe música, dança e outras formas de arte em Rosas, por que aquele desejo em específico seria perigoso? A Estrela pode dar consciência a plantas, fazer animais falarem, coisas flutuarem, mas é dito que ela não pode realizar desejos, para depois, ela dar um tapinha em um graveto e torná-lo uma varinha mágica sem limitações. Ou ela é superpoderosa ou não é. 

Fora as temáticas rasas ou deixadas pela metade, não apenas a questão do desejo. O filme ensaia uma grande rebelião, o povo se levantando contra o sistema, mas no fim da obra, o sistema é o mesmo, nada mudou. A impressão que tive, é que tudo isso só acontece, porque queriam ficar enfiando menções e referências aos outros filmes do estúdio, e a história tinha que ir se moldando ou tentando continuar no meio dessas pedras jogadas no caminho, mas assim, não se tem nem uma homenagem, nem uma obra original, uma coisa fica tentando contornar a outra.

Fica visível isso quando se fica sabendo de algumas ideias descartadas da história. Como a Estrela na verdade ser um tipo de Jack Frost de A Origem dos Guardiões (Rise of the Guardians, 2012) e a Rainha ser má junto com o Rei, seria o primeiro casal vilão da Disney, mas isso foi descartado para se ter uma pelúcia mais vendável e um vilão mais parecido com os anteriores.

Chegando tarde para a brincadeira 

O estilo de animação escolhido para Wish é claramente a empresa tentando correr atrás de inovar, usando a técnica que fez seu curta O Avião de Papel (Paperman, 2012) levar um Oscar e nunca mais foi usada. Em entrevistas foi dito que isso seria um jeito de não perder os esboços feitos no processo do filme, poder utilizá-los no produto final. Ok, conseguem fazer o 3D com linhas 2D funcionar e juntar as técnicas de um jeito que ainda não tinham feito, mas eu não vi esse aproveitamento de esboços que falaram, e também não considero uma perda. Fazer qualquer tipo de obra tem um processo, elementos surgem e são descartados, não é desperdício, é parte do processo.

Já não seria uma concorrência fácil com antes desse filme terem saído Super Mario Bros. : O Filme (The Super Mario Bros. Movie, 2023), Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (Spider-Man: Across the Spider-Verse, 2023) Nimona (2023), As Tartarugas Ninja: Caos Mutante (Teenage Mutant Ninja Turtles: Mutant Mayhem, 2023) e Elementos (Elemental, 2023). A sorte foi ser um filme de final de ano e disputar bilheteria basicamente com Patos! (Migration, 2023), mas a concorrência para premiações está aí.

Para mim, seria muito mais corajoso uma animação toda feita em 2D tradicional ou misturando as estéticas que o estúdio já teve. Porque a técnica funciona, mas não o tempo todo e com a mesma qualidade. Em Magnífico é perfeita, incrível, com Asha já me causou um incômodo com as linhas do rosto dela, e que Walt me perdoe, mas em Dahlia, uma coadjuvante, é terrível. Ela parece uma grande bola branca flutuando pela tela, lembrando muito Princesinha Sofia (Sofia the First, 2012-2018), uma animação infantil da empresa que obviamente é muito mais barata do que os longas e que tem uma direção de arte fofa com personagens crianças, mas bem complicada com personagens adultas. Acabou que a estética parece uma mistura da que os longas assumiram desde Enrolados, com Princesinha Sofia, e elas não tem a mesma qualidade.

Algo que acho que contribuiu para isso, acredito que foi deixarem o rosto das personagens “liso”, como uma animação 2D, mas isso é estranho, tanto que Asha tem sardas, acredito que para driblar um pouco isso. Enquanto os estúdios de animação estão tentando misturar e criar texturas, a resposta desse filme foi se livrar de quase todas.

A direção de arte não ajuda muito sendo básica e pouco criativa. É só olhar para o vestido de Asha, roxo em cima de lilás, em cima de mais roxo, com quase nenhuma textura. Depois de termos tido uma infinidade de texturas e cores em Encanto (2021), o que foi isso? O cabelo da personagem é o que tem de mais interessante, pelo menos o render de cabelos foi mantidos.  Os cidadãos então são terríveis, eu não tinha notado até uma cena específica que tirando Asha, personagens ligadas a ela, o Rei e a Rainha, todo o resto usa o mesmo tom de azul. Foi algo horrível de perceber. Se fosse algo que contasse a história, que pessoas que já entregaram o desejo usam essa cor e as que não usam outras, seria uma coisa, isso foi só muito estranho.

Rosas não tem nenhuma cor, é tudo pedra cinza. Depois pensei que poderia ser para parecer uma prisão, mas pelo menos mais vermelho, mais desenhos de rosas, ou rosas mesmo por ai, para disfarçar, não sei. Visualmente o Rei e a Rainha são os mais bem trabalhados, isso é um fato. O que eu tiro meu chapéu, no entanto, são os backgrounds, os cenários. As aquarelas são lindas e foram inspiradas em cenários e artes conceituais de filmes predecessores, alguns quase um copia e cola, e isso sim ficou belíssimo de se ver.

Um vilão magnífico e uma protagonista…

Esse filme é do Rei Magnífico. Ele é a melhor personagem, o que mais funciona, o protagonista do roteiro e da montagem, Asha parece mais a protagonista da divulgação do que outra coisa. O livro no início da história tão falado e prometido conta a história DELE! Não a de Asha, ela é a narradora. Queriam um filme com vilão marcante depois de alguns filmes sem vilões – o que eu não entendo, se tem vilão é maniqueísta, se não tem é chato, melhorem fãs da Disney – e que seria realmente mal, sem redenção ou motivação. Para o pesadelo dos fãs do maniqueísmo, Magnífico tem motivações, elas só não são apresentadas. É quase o maior mistério do filme: o que aconteceu com Magnífico e no seu reino anterior, que o fez ficar assim? Sabemos que aconteceu algum tipo de tragédia ou invasão quando ele era criança, tem até mesmo uma flâmula queimada que parece esconder um segredo, mas o filme esquece tudo isso e diz que ele foi consumido pelo próprio mal e a própria magia ao longo da trama e isso não tem volta. 

Acabei vendo mais de uma pessoa dizer que ele seria “só um babaca” e não um vilão, realmente. E para essas pessoas eu digo: é o quê? Estamos falando de um homem lindo e charmosíssimo? Sim! Mas um homem lindo e charmosíssimo que manipula toda uma população tirando sua vontade de viver, para que ela viva pra servi-lo na esperança de ser notada por ele enquanto ele se mantém no poder de modo egoísta e soberbo, é praticamente prender a alma das pessoas. Ele pode não ter atirado o irmão de um penhasco ou agiotado a própria sobrinha, mas “só um babaca”? Me preocupa as coisas que vocês acham “apenas babaquice” na vida real.

E Asha? Será que só perderam a mão e fizeram um vilão marcante demais? Não. Mesmo amando Scar ainda gostamos de Simba, mesmo adorando Jafar ainda torcemos para Aladdin, o problema de Asha é que não conseguimos nos conectar com ela.

Ela é esperta, aventureira, divertida? Sim, mas é muito perfeita, pura abnegação e naturalmente boa. Nós passamos o filme inteiro sem saber o que ela quer. Ela começa sendo candidata a aprendiz do Rei, mas não porque sonha em aprender magia, ser maga, realizar os desejos dos outros, é só por ser um cargo importante, aparentemente. Meio que o desejo dela, é que os desejos dos outros se realizem. Nós viemos de um histórico de protagonistas lindamente imperfeitas e até egoístas como Raya e Mirabel recentemente, para cair em uma personagem linda, mas que não conseguimos dizer o que tem nela que temos em nós.

No início do filme ela mostra um caderno de desenhos, onde ela fez até mesmo um flipbook no canto. Eu achei que seria isso, Asha queria ser desenhista, animadora, ela queria inventar a animação, o que quer que fosse, esse caderno parece muito importante por alguns segundos e depois apenas some. Nem para invocar um flashback em animação 2D ele serve, mas me pareceu que deveria servir para algo mais, que no fim se perdeu na produção.

Referenciar VS entender

Esse filme é lotado de referências, isso todo mundo já sabe e até o momento em que elas são apenas visuais, está tudo bem, o problema é quando inserem-nas na história. O ápice para mim é o grupo de amigos de Asha, sete personagens referenciando cada um dos sete anões e que estão ali só para ocupar espaço, metade não é relevante para a história. Hal, que é a contraparte de Feliz, se tiver duas falas tem muitas, Bazeema que é a contraparte de Dengoso, não tem nada de dengosa. Se tivessem resumido para três ou quatro amigos, funcionaria muito mais, deixaria os interessantes terem mais espaço, até. E observe: eu digo isso depois de termos tido Encanto, que tem uma família de 12 personagens, que conseguem cumprir suas funções no filme, serem marcantes, interessantes e funcionar sem parecer excesso, ironicamente.

O que resume para mim como as referências são usadas no filme é no final, com uma referência a Peter Pan, diminuírem a personagem apenas para um menino que quer voar. Mais superficial impossível. Foi quando entendi que ou executivos interferiram demais, ou para o filme, decidiram assistir a todos os filmes do estúdio no mudo e fazer um checklist: animais falantes, menino que voa, magia verde, estrela… E por aí vai. Então viram, mas não entenderam sobre o que estavam falando e o que estavam assistindo.

Sinceramente, Era Uma Vez um Estúdio (Once Upon a Studio, 2023) e a cena com as princesas em WiFi Ralph: Quebrando a Internet (Ralph Breaks the Internet, 2018), são homenagens que fazem referências muito melhores e mais divertidas.

 

As músicas

Chegamos a uma parte importante das animações da Disney. Se já foi um ano difícil para concorrer com animações, para concorrer com musicais também não ficou mais fácil. Acabamos de ter Trolls 3: Juntos Novamente (Trolls Band Together, 2023), Wonka (2023), A Cor Púrpura (The Color Purple, 2023) e concorrendo consigo mesma, o live action  de A Pequena Sereia (The Little Mermaid, 2023).

Sendo bem direta e sincera, as músicas dependem muito do vocal de quem canta, porque de resto no geral, é tudo simples e fraco. Longe de mim querer diminuir o trabalho de Julia Michaels e Benjamin Rice com as letras e de Dave Metzger com as melodias, eu não sei se os executivos se meteram muito nesse quesito, mas essas pessoas são capazes de fazer algo muito melhor. Metzger diz ter usado instrumentos diversos da Espanha e do Mediterrâneo, mas eu só consegui pensar que Lin-Manuel Miranda fez um trabalho muito melhor em parceria com Germaine Franco, Opetaia Foa’i e Mark Mancina em Moana: Um Mar de Aventuras (Moana, 2016) e Encanto, seguindo a mesma ideia de instrumentos tradicionais.

Tem algo diferenciado em alguns momentos em que eu senti que aconteceu um flerte com sons que me lembraram sinos dos ventos, algo meio esotérico, mas devem ser sido as vezes em que ele inseriu a melodia de Se Uma Estrela Aparecer/When You Wish Upon a Star.

Saindo da cabine, um amigo comentou se não poderia ter sido uma questão de adaptação das letras, já que assistimos ao filme dublado. O que achei impossível por geralmente serem as mesmas equipes trabalhando nessas obras – exemplo, quem trabalhou adaptando filmes anteriores é chamade para adaptar novamente – e ouvi a trilha original e não, o material original é fraco mesmo, de letra e melodia, falta força, falta sentimento, falta ser marcante. Não é uma trilha sofisticada como a de O Corcunda de Notre Dame (The Hunchback of Notre Dame, 1996), intensa como a de Tarzan (1999) ou emocional como de A Pequena Sereia (The Little Mermaid, 1989), ela quase é, e de novo, isso é que me pega. O filme e as músicas quase chegam lá o tempo todo. Para não ser injusta, duas das músicas eu acho que realmente funcionaram totalmente, mesmo não sendo ainda o que poderiam ser.

Uma alternativa talvez pudesse ter sido escolher músicas dos filmes anteriores e as trabalhado novamente, como vem sendo feito com as adaptações em live action e juntar Alan Menken, Stephen Schwartz, Lin-Manuel Miranda, Robert Lopez e Kristen Anderson-Lopez, que estiveram juntes no especial de aniversário de Menken, que são amigues, que são compositores e letristas de sucesso, que estão no auge e deixaria essas pessoas trabalharem. 

Importante notar que a trilha original e a em português são um pouco opostas. No sentido de, em inglês, Ariana DeBose (voz de Asha) precisa carregar o suplício que é Chris Pine (voz de Magnífico) cantando e em português Raphael Rossatto (voz de Magnífico, na dublagem) precisa levantar a ainda inexperiente Luci Salutes (voz de Asha, na dublagem), e carregar a dublagem nas costas. Um trabalho que eu preciso aplaudir, assim como o do diretor Robson Kumode e do diretor musical Felipe Sushi, que conseguiram fazer esse malabarismo de potencializar Luci, ainda crua em todo processo, usar Raphael para ajudá-la quando preciso e tirar dele tudo o que tinha e o que não tinha para o resto do filme.

Já chegamos até aqui e esse texto não vai diminuir, então vou comentar o mais brevemente possível sobre cada música.

Bem-vindo a Rosas/Welcome to Rosas – essa música lembra Família Madrigal/The Family Madrigal, e parece apresentar o lugar de um jeito mentiroso, porque fala de mil maravilhas que não existem. O único atrativo da cidade é o Rei Magnífico, não tem nada de especial para se mostrar por ali. 

Protegê-los do que For/At all Costs – essa é uma das que eu acho que funciona, mostrando a dualidade das personagens em relação aos desejos, é gostosa de ouvir e onde é possível perceber Ariana DeBose sustentando Chris Pine e Raphael Rosatto apoiando Luci Salutes.

Um Desejo Só/This Wish – essa é a outra que funciona, é a música do filme que permanece, que marca e foi a primeira a ser feita, antes até de chamarem o compositor. É bonita e tem força, mas eu ainda acho que poderia ser mais potente.

Você é Uma Estrela/I’m a Star – ok, essa é um caso complicado. Ela foi inspirada em À Vontade/Be Our Guest e Aqui no Mar/Under the Sea (mas não chega aos pés de nenhuma das duas), é aquela música divertida do filme, vários animais cantando, na dublagem encheram ela de pessoas famosas: Di Ferrero, Alcione, Evelyn Castro, Solange Almeida e Xande de Pilares. Ela é a que tem o melhor conceito, aquilo de “Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”, citação de Shakespeare. A ideia é que ela vai apresentar essa ideia e ela vai se pagar no final, mas no final, a que é cantada é Um Desejo Só/This Wish, então a música fica completamente perdida na história e não tem muito porque estar aqui na verdade.

Quem Vai Me Agradecer/This is the Thanks I Get – essa música é o maior pesadelo de Bob Iger, CEO da Disney. Como o público estava gostando dos conceitos do Rei Magnífico, liberaram primeiro a música solo dele, essa aqui. A recepção foi terrível, todo mundo odiou e acredito que foi o que fez liberarem a trilha toda mais cedo como quem diz “Por favor, não flopem meu filme, eu juro que tá legal.” E eu venho dizer que o problema não é a música. Ela lembra De Nada/You’re Welcome, e não é a primeira vez que um vilão canta uma música em que ele pensa que ó herói, vemos isso em Não Há Igual a Gastão/Gaston e Sua Mãe Sabe Mais/Mother Knows Best. Ela também é bem idealizada, Magnífico a canta em um momento de frustração, é passiva agressiva até se tornar raiva pura e marcar sua transição para vilão declarado. Óbvio, eu acho que ela tem esse problema de letras fracas como as outras, mas o problema mesmo é o Chris Pine, ouçam a música em português na voz do Raphael Rossatto, é outra coisa com alguém que sabe cantar.

Não dá Mais pra Não Ver/Knowing What I Know Now – essa é mais interessante sonoramente, por investir em instrumentos de percussão, me lembra muito a trilha sonora de Tarzan e deve ter sido terrível para adaptar, pois em inglês todas as rimas são com palavras de final –ow, um som que não temos muito em português. 

A trilha sonora completa de Wish está disponível nas plataformas digitais e no Youtube.

E a magia?

Onde foi parar a magia e o encantamento desse filme? Deveria estar nos animais falantes? Valentino é uma graça, mas é só isso? Na bola fofa e amarela que aceitamos que é uma estrela? Não me leve a mal, ela é fofa, tem um timing cômico ótimo, mas ela é completamente dispensável para o filme. Asha poderia ter se motivado de outro modo para salvar os desejos. E ainda jogaram de que ela seria uma referência ao próprio Walt Disney, por ser a portadora de possibilidades. Ficou mais parecida com a Sininho mesmo, perdão.

Acho que focando demais em referências visuais ou sofrendo interferências externas, Chris Buck, Fawn Veerasunthorn e equipe acabaram esquecendo o que Howard Ashman nos ensinou lá nos anos 90. A como se conectar com sereias, feras e homens azuis, através de seus corações.

Depois de eu escrever tanto, não parece, mas eu até gostei de Wish: O Poder dos Desejos, é um filme ok. A questão é que pior do que um filme ruim, é um filme que poderia ser maravilhoso, mas não é, por motivos que eu não vou saber explicar, já que tinha tudo em mãos.


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