Taxi Driver – 40 anos de um percurso

 

– You talkin’ about me?
– Yes, Travis!

 

Em abril deste ano, os atores Robert De Niro, Jodie Foster, Harvey Keitel e Cybill Shepherd, além do diretor Martin Scorsese e do roteirista Paul Schrader, reuniram-se no Festival Tribeca para uma exibição especial de Taxi Driver – obra que este ano completou Bodas de Esmeralda. No final, houve uma palestra, onde cada um pode falar o significado do filme em suas carreiras. Os percursos traçados na carreira por cada um dos envolvidos no filme de 1976 tem uma parada obrigatória: as solitárias e frias madrugadas nova-iorquinas dentro de um táxi amarelo.


– Vai pra onde, Mr. Hollywood?

No início dos anos 70, os EUA enfrentaram uma forte crise econômica provocada pela desvalorização do dólar e a alta no preço do petróleo. Na época, a nação vinha de uma humilhante derrota na guerra do Vietnã (1964-1975), a juventude contestava os valores tradicionais do país e o escândalo político em “Watergate” abalava a democracia estadunidense.

 

A indústria cinematográfica norte-americana não ficou de fora dessas mudanças. Ela já enfrentava uma crise que se arrastava havia décadas e a fórmula dos grandes estúdios de fazer filmes – diretores contratados para produzir diversão com astros representando o glamour de uma época – estava esgotada. Era o fim da “era de ouro” de Hollywood. Era clara a incapacidade dos estúdios, nessa época, de atrair público às salas de cinema – principalmente, o mais jovem. A solução encontrada foi dar oportunidade a uma nova geração de realizadores: na sua maioria, jovens oriundos das faculdades de cinema, que cresceram vendo filmes hollywoodianos e recebendo forte influência de outros cinemas do mundo, principalmente o Europeu e o Asiático. Esta solução alterou completamente a maneira de fazer cinema nos anos 70. Iniciava-se a “Nova Hollywood”. Peter Biskind, autor da obra / Easy Riders, Raging Bull – Como a geração sexo-drogas-rock’n’roll salvou Hollywood (2009) diz que “a Nova Hollywood era um movimento determinado a libertar o cinema de seu irmão gêmeo do mal, o comércio, (…) Os cineastas dos anos 70 pretendiam derrubar os estúdios, ou pelo menos torná-los irrelevantes, por meio da democratização do processo de fazer filmes, colocando-o nas mãos de qualquer que tenha talento e determinação”.

 

Fazem parte desta geração, realizadores como Steven Spielberg, Franscis Ford Copolla, Brian De Palma, George Lucas e Martin Scorsese. Este último, respeitado por seus filmes e por defender a preservação da memória cinematográfica.

– Ei, baixinho, onde fica Little Italy?

Scorsese nasceu em Nova York (1942) e formou-se em cinema. Trabalhou como assistente de direção e editor, até dirigir seu primeiro longa no final dos anos 60, Quem Bate à Minha Porta (Who’s That Knocking at My Door, 1968). Em seus mais de 40 anos de carreira, Scorsese nunca se limitou a um gênero. Fez documentários, cinebiografias, dramas, com destaque para os filmes sobre a máfia. Soube alternar projetos comerciais com outros pessoais e menos sucedidos.

 

Tornaram-se pontos comuns em seus filmes: um rigoroso planejamento antes de qualquer filmagem (ele faz questão de fazer os storyboards), uso do travelling, câmera lenta e movimentos de câmera. São temas frequentes em sua filmografia: crime, violência e religião. Repetir parcerias com atores (De Niro, Harvey Keitel e Leo DiCaprio agradecem) é recorrente. A presença da cidade de Nova York também é mais recorrente. Se você vibra com as trilhas sonoras dos filmes de Tarantino, então preste mais atenção nas escolhas musicais que Marty faz em suas obras. Its cool! 

 

Além disso tudo, Scorsese ocupa um lugar de destaque no cinema que é o de “arqueólogo da sétima arte”, pois ele, além de criar; pesquisa, preserva e restaura filmes antigos.

– Ei, acabo de sair da Igreja. Preciso de um táxi!

Nos anos 70, Scorsese atinge o sucesso de crítica e público, com os filmes Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973) e Taxi Driver (1976), obras que carregam características comuns: o emprego de locações em Nova York; um estilo visual fluido e enérgico; interesse pela subcultura criminal, com protagonistas masculinos atormentados; e violência gráfica.

 

Taxi Driver, drama que acompanha a vida solitária de Travis Bickle, ex-combatente do Vietnã que se tornou um taxista em Nova York. Alienação, solidão, raiva e violência urbana são temas encontrados nesta obra. É um filme bastante representativo de sua época e de como as histórias eram feitas: impulsionadas por personagens (os mais humanizados possíveis) e não mais pelas tramas e que quebravam com as convenções tradicionais da narrativa.

O filme foi rodado no verão de 1975 ao custo de 1,9 milhões de dólares e faturou 12, 5 milhões de dólares somente nos EUA. Na época, o filme recebeu a Palma de Ouro em Cannes, além de 4 indicações ao Oscar (incluindo, a de melhor filme). Perdeu para Rocky: um lutador (Rocky, 1976), de John G. Avildsen. Também pudera! Com a moral baixa da sociedade norte-americana pós-guerra do Vietnã, a história da “cinderela de luvas” é mais edificante e motivacional do que um taxista solitário e perturbado.
A obra de Scorsese teve forte influência de outros gêneros e escolas cinematográficas. O roteiro escrito por Paul Schrader foi influenciado pelo filme do francês Robert Bresson, O Batedor de Carteiras (Pickpocket, 1959), com sua narrativa confessional e a visão vouyerista da sociedade. O crítico Roger Ebert traça semelhanças do filme com o clássico do faroeste Rastros de Ódio (The Searchers, 1956) de John Ford, no que diz respeito aos seus protagonistas. O filme flerta com o Cinema Noir, ao usar uma trilha sonora jazzística e uma narração in off.

 

Scorsese era admirador dos filmes de John Cassavetes, do Neo-realismo italiano e da Nouvelle Vague, em especial, os filmes de Jean-Luc Godard. No filme, estas influências se encontram no uso da câmera na mão, nas locações reais e em improvisações do elenco.

 

O cinema americano setentista era sombrio e pesado, abandonou a leveza do cinema das décadas anteriores e passou a tratar seriamente de temas do cotidiano – como violência, drogas, sexo, caos urbano, solidão, política e novos valores. O momento vivido pelos EUA nos anos 70 é ilustrado de forma crua na obra, através de situações que, na verdade, são problemas enfrentados pela sociedade americana. No filme, vemos a situação do veterano de guerra que volta para seu país e encontra dificuldades de inserção na sociedade (as regiões mais pobres de Nova Iorque são marcadas pelo desemprego, prostituição e drogas). Mesmo com o fim da Guerra do Vietnã, a violência permanece na vida dos cidadãos. Dessa vez, ela ganha contornos bem urbanos, o inimigo pode ser um cidadão comum e o filme mostra bem essa situação.

 

Sobre a narrativa e a decupagem da obra, podemos perceber alguns pontos. A história se desenvolve numa narrativa clássica: trama linear, centrada no embate do protagonista e seus conflitos, que reside o impacto dramático da narrativa. A trama se desenvolve, praticamente, sob o ponto de vista de Travis. Eis a grande sacada do roteiro de Schrader – escrito em apenas dez dias, é baseado em suas experiências pessoais, numa época que andava insone pelas ruas de Nova York, frequentando cinemas pornôs e andando de táxi – toda a história é mostrada a partir do olhar solitário do taxista (a única cena que Travis não está presente é a cena que Iris e Sport fazem juras de amor e dançam no quarto. Esta cena não aparece no roteiro original).

 

Conhecemos os outros personagens através do protagonista. A trama acompanha suas tentativas de integração ao meio. Os diálogos do roteiro contribuem para que estas tentativas de se integrar nunca se concretizem. Um Travis bastante silencioso ou monossilábico na presença dos colegas de trabalho ou estranhos, se contrapõe a sua voz em off, que carrega um discurso bastante verborrágico, moralista e cheio de desprezo pelas pessoas que ele se depara nas ruas nova-iorquinas. “Todos os animais saem à noite – prostitutas, depravados, pederastas, drag queens, michês, drogados, viciados, doentes, mercenários. Um dia uma chuva de verdade virá e lavará toda essa escória para fora da rua.”. Essa postura de Travis em relação aos outros tem muita importância para compreendermos a condição solitária do protagonista.

 

A fotografia do filme é construída para corroborar com o ponto de vista do protagonista sobre toda a trama. A câmera conduzida por Michael Chapman é usada em tomadas que se movimentando lentamente. Isto é bastante visível, quando ela acompanha os movimentos de Travis fora do táxi ou quando se encontra dentro dele. É no interior do veículo que os planos captados são os mais variados possíveis (no banco de trás, ao lado de Travis, sobre o capô, entre outros) e num ritmo mais lento do que o habitual. Sobre a utilização da técnica de câmera lenta, o crítico Roger Ebert em sua obra A Magia do Cinema (2004) nos fala:

 

“(…) Scorsese tinha encontrado um uso pessoal para isso, uma forma de sugerir um estado subjetivo com uma sequência do ponto de vista do ator. E em cenas durante o jantar dos motoristas, ele lança mão de close-ups para observar detalhes e mostrar como a atenção de Travis está longe da conversação. (…) Uma das missões mais difíceis para um diretor é sugerir o estado interior de um personagem sem utilizar diálogos; uma das maiores conquistas de Scorsese em Taxi Driver é nos levar para dentro dos pontos de vista de Travis.”

 

Os cortes seguem o ritmo da construção da trama, com exceção da cena da chacina, onde os cortes surgem de forma frenética. Tem-se a opção de focalizar nos detalhes, (armas sobre a cama ou o copo com efervescente), como se fosse o olhar do protagonista.

 

A parte sonora do filme dá ênfase a sons que só Travis ouve. É uma forma de acompanhar o seu ponto de vista, como exemplo, temos a cena do copo com efervescente, o chiado vindo do copo aumenta gradativamente. Em relação à trilha sonora criada por Bernard Herrmann, (criador da marcante trilha sonora de Psicose – 1960) “ela se alterna abruptamente entre a melancolia do jazz e a sinistra combinação de caixas e metais para sugerir o potencial de violência que se oculta por trás da solidão e das fantasias românticas de Travis” (Philip Kemp, em Tudo Sobre Cinema – 2011).

 

– Ei garoto, você é de Nova Iorque? Sabia que você tem cara de mafioso?

Quanto ao trabalho dos atores, o maior destaque com certeza é de Robert De Niro, o ator por trás de Travis. De Niro faz parte de uma geração de atores (como Gene Hackman, Al Pacino e Harvey Keitel) que, na sua maioria, haviam estudado o Método do russo Stanislawsky – na Actor Studios (fundada em 1947) – cujo objetivo era buscar a integração completa entre ator e personagem.
De Niro leva muito a sério a construção de seus personagens. No caso de Travis, ele trabalhou durante um mês como taxista em Nova York; usou nas filmagens peças de roupas de Schrader; levou várias vezes a atriz Jodie Foster para tomar café da manhã juntos a fim de compor a cena de Travis e Iris no restaurante. Foi assim que ele criou uma personalidade para Travis. Não foi à toa, que a esquizofrenia oscilante apresentada pela personagem não se configurava desta maneira no roteiro original. De Niro soube muito bem personificar o desespero e a frustração da personagem. Desespero por não conseguir estabelecer contatos com os outros e frustração por saber que está dentro de um mundo marcado pela decadência e por mais que ele dirija noite após noite, Travis nunca encontrará um caminho para fora deste mundo decadente que ele vê pela janela de seu táxi.

 

O monólogo diante do espelho – “Você está falando comigo? Bem, eu sou o único aqui” – tão cultuado pelos cinéfilos, foi puro improviso de De Niro. Somente um ator bem preparado, tão identificado com a personagem para sintetizar em duas frases, um dos principais temas do filme: a solidão. Em outro momento do filme, ele fala: “A solidão me seguiu a vida inteira. A vida de solidão me persegue aonde quer que eu vá: bares, carros, cafeterias, cinemas, lojas, calçadas. Não há escapatória. Eu sou o homem solitário de Deus.”

 

– Finalizando a corrida, chegando ao destino final.

A primeira vez que vi ao filme, era um adolescente e obra causou-me estranhamento e nada mais. À medida que aprofundava meu olhar no mundo cinematográfico, nos filmes de Scorsese e De Niro é que Taxi Driver ganhou uma nova conotação de minha parte.

 

Hoje, reconheço todas as técnicas cinematográficas aplicadas com maestria pelo diretor, num roteiro muito bem construído e a importância que a obra recebeu ao longo de seus 40 anos. Contudo, o que mais me toca no filme, é seu potencial em dialogar com a época de sua feitura. E este diálogo contribui para a magnitude dessa obra cinematográfica, pois ela faz uma crítica ao seu contexto histórico. Um clássico que faz parte de um cinema mais questionador de uma sociedade que já foi mitificada por outros filmes em décadas anteriores. E como todo clássico, sua presença ecoa ao longo do tempo.
Já pensou, se Travis vivesse em pleno século XXI? Ele possivelmente teria perdido sua vaga de táxi, estaria trabalhando com o Uber, perturbando seus clientes via whatapps, continuaria fazendo justiça com as próprias mãos (encarnaria o “Bandido bom é bandido morto”) e a redes sociais (mais do que a mídia) o aclamaria como um herói. Opa! Acho que voltamos aos anos 70 e eu não desci do táxi!

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Não deixe de ver uma lista que o Thiago Sena preparou com suas cenas preferidas dos filmes do Scorsese.