Tudo começou nos anos 50, quando Dodie Smith, uma mulher inglesa, estava passeando com seu dálmata Pongo e com uma amiga que, ao olhar o pelo manchado do animal soltou o comentário “ele daria um ótimo casaco de peles” (ou algo do tipo). A frase rendeu um livro, que mais tarde teve continuação, e quando seus direitos foram comprados por um senhor chamado Walt Disney, rendeu, com o tempo, dois longas-metragens animados, duas séries animadas, dois filmes live action e cunhou uma das vilãs mais icônicas da empresa, famosa por seu cabelo bicolor e pelo arrepio que seu nome causa em tutores de pets até hoje: Cruella de Vil.
Não é de hoje que a Disney investe em seus vilões, afinal muitas das histórias nas quais seus filmes são baseados, essas personagens são pouco mais do que um título e um ato maldoso, para render filmes de grandes bilheterias foi preciso criar visuais, personalidades e histórias que os tornaram inesquecíveis e únicos ao longo dos anos. Não à toa, se eu disser Rei Leão aqui, você provavelmente vai se lembrar do Scar antes do Simba ou que mesmo Úrsula sendo uma agiota golpista que mantém sereias em cárcere privado, muita gente ainda diz que ela era apenas uma mulher de negócios.
Muitos produtos da empresa focam nessas personagens, eu ousaria dizer até que os mocinhos dos filmes não fazem tanto sucesso quanto seus antagonistas, vide, por exemplo, uma série de livros contando as histórias dos vilões antes dos filmes que vem sendo lançada peça Disney. Talvez essa predileção mostre que, desde criança, estamos mais interessades em personagens e histórias interessantes por mais que no final delas nem sempre o bem triunfe sobre o mal? Fica o questionamento.
Cruella de Vil, originalmente, era apenas uma mulher amante de casacos e roupas de pele (falando aqui como pessoa que nunca leu 101 Dálmatas integralmente), talvez por sentir sempre muito frio, até mesmo em incêndios, mas a Disney conseguiu transformá-la em um verdadeiro ícone da moda inglesa e com a recente onda de live actions, era de se esperar que um filme da vilã acontecesse, ainda mais considerando que desde Malévola (Maleficent, 2014) e Malévola: Dona do Mal (Maleficent: Mistress of Evil, 2019), uma vilã das animações não tinha voltado a ser protagonista de um live action.
Cruella (2021) estreou dia 3 de junho no Disney+, novamente com o Premier Acess, sobre o qual já falei um pouco sobre no meu texto de Raya e O Último Dragão (Raya and the Last Dragon, 2021), mas resumindo bastante a questão, se não começar a rever os valores desse acesso, aqui no Brasil pelo menos, esse tipo de estreia do Disney+ vai perder fácil para a pirataria.
O filme conta a história de Estella – por essa você não esperava, não é mesmo? – uma jovem com vocação para estilista desde pequena, mas com uma visão a frente de seu tempo, que contrastava bem com sua personalidade digamos… difícil. Estella nunca se deu bem com regras ou qualquer coisa predeterminada que dissesse como ela deveria ou não se comportar, além de ser arrogante e grossa na maior parte do tempo. Se quiser uma palavra mais complexa, Estella sempre foi transgressora. Isso faz com que sua mãe dê o apelido de Cruella para seu lado mais difícil de lidar e a usa de modo lúdico para ensinar a filha a ser alguém mais agradável. “Se Cruella aparecer, peça educadamente para ela ir embora.”
Devido às circunstâncias, Estella acaba indo parar nas ruas de Londres com seu cachorro Buddy onde conhece Gaspar, Horácio e o cachorro deles, Wink. Os cinco acabam formando uma espécie de gangue que, ao longo dos anos, aplica pequenos golpes para sobreviver, até que surge uma chance real para que Estella trabalhe com moda, o problema é que devido a algumas coisas que acontecem, ela vai precisar liberar o seu lado Cruella, até então contido, para atingir seus objetivos.
O filme foi dirigido por Craig Gillespie, diretor de Eu, Tonya (I, Tonya, 2017) e roteirizado por Dana Fox, Tony McNamara, Aline Brosh McKenna, Kelly Marcel e Steve Zissis, que tem currículos bem diferentes, mas que conseguiram com essa mistura criar uma história coerente.
Cruella acabou sendo eternizada no cinema por Glenn Close com os live actions de 1996 e 2000, então Emma Stone já chegou com certa pressão sobre seus ombros. Mas desde o início a atriz deixou claro que não planejava imitar a antecessora, que está presente no novo filme como produtora executiva, e no fim conseguiu criar sua própria versão de uma Cruella excêntrica sem parecer canastrona ou anacrônica, que combinaram muito com seu sotaque inglês e, pessoalmente, penso que todas as atrizes que já interpretaram a personagem, interpretaram bem a sua Cruella específica, tanto a histérica de Betty Lou Gerson da animação de 1961, a chamativa de Glenn Close, a amargurada de Victoria Smurfit em Once Upon a Time (2011-2018) e a falida vingativa de Wendy Raquel Robinson em Descendentes (Descendants, 2015).
Na dublagem – que para os que preferem assistir dublado, está muito boa – o trabalho de dublar Stone ficou com Mariana Torres, voz recorrente da atriz, que soube adaptar bem o tom sarcástico e singular da personagem, sem alguns dos trejeitos, mas que acredito que não funcionariam tão bem em português.
A direção de arte com certeza é o maior destaque do filme depois do elenco, em especial os figurinos belíssimos da oscarizada Jenny Beavan, que caprichou não apenas nos momentos icônicos e extravagantes da protagonista, com maiores referências ao punk rock, mas teve um cuidado especial com todas as personagens, por exemplo, personagens negres que no geral não tem tanto destaque, mas esbanjam tanto estilo quanto a própria Cruella, exibindo seus cabelos lindos e volumosos já que o movimento Black Power estava em alta na época.
Pena que a Disney deixou a estilista de fora das negociações sobre o licenciamento das roupas que ela mesma criou. Até o momento da escrita desse texto, não encontrei nenhuma informação sobre essa questão ter sido resolvida ou não.
A trilha sonora do filme ajuda a completar sua vibe setentista, com ótimas escolhas para a trilha musical, mas nem todas encaixadas nos melhores momentos na montagem, algumas funcionam melhores do que outras. Inclusive na montagem é possível perceber que Wink rouba a atenção de Buddy, que deveria ter mais destaque no roteiro, mas em defesa do coitado, é difícil competir com um chihuahua (acho) de tapa olho.
Tecnicamente os efeitos visuais foram o único aspecto técnico que deixou a desejar para mim, uma cena na água que ficou muito estranha e o frequente CGI usados com os cachorros. Mesmo com os 15 cães creditados no IMDB apenas para os cinco principais, é possível perceber muitos efeitos usados em alguns momentos, especialmente para quando que os dálmatas rosnam.
Pensando sobre isso, imagino que tenha acontecido porque para fazer os cães rosnarem seria preciso submetê-los a algum stress ou porque alguns planos pediam por ações complicadas dos mesmos, o que exigiria uma montagem mais picotada que na verdade é comum em filmes protagonizados por animais, pois seria difícil pegar a ação completa em um take, quanto menos em um plano, mas esse tipo de montagem não caberia no filme. Independente do motivo, claramente faltou dinheiro na finalização desses efeitos o que pode quebrar a imersão.
Antes de falar da história propriamente é preciso colocar algumas cartas na mesa. Primeiro que, ao contrário do que o marketing do filme não deixou explícito, Cruella está muito mais próximo do que foi Malévola do que um prequel para 101 Dálmatas (One Hundred and One Dalmatians, 1961). O filme não vai justificar suas ações, nem vamos vê-la chegar ao ponto em que está na animação, a intenção é criar algo novo, esse live action não se encaixa na animação assim como Malévola não se encaixa em A Bela Adormecida (Sleeping Beauty, 1959), não é uma jornada de redenção, até porque não existe redenção para algo que pelo modo como a personagem foi construída, ela não fará. Até poderiam reverter isso com um roteiro bem escrito, mas ao que tudo indica não vai acontecer.
Mesmo gostando de alguns dos remakes da Disney, prefiro esse tipo de abordagem, ver personagens velhos em novas histórias (muito fanfiqueira), ao invés de filmes iguais. Acredito que assim existe mais espaço para os novos roteiristas criarem e o filme não fica a sombra de um preexistente e, querendo ou não, os live actions sempre parecem ficar em um limbo entre não serem iguais o bastante e terem diferenças demais com os originais, ou serem iguais demais sem diferenças o bastante.
Segundo, Cruella nunca conseguiu matar nenhum cão em 60 anos de existência, não que ela não tenha tentado. Mas ao que parece existem memórias falsas de pessoas que tem certeza que a personagem tem armários cheios de roupas feitas de peles de cães e que ela matou filhotes na animação. Nada disso aconteceu e é algo ironizado em uma fala no filme.
Na re-imaginação que é Cruella, acompanhamos uma personagem que é dona de sua própria história, repleta de vingança, que ao mesmo tempo bebe de filmes de assalto, como Oito Mulheres e Um Segredo (Ocean’s Eight, 2018), contando com grandes golpes e reviravoltas, e também de filmes moda como Trama Fantasma (Phantom Thread, 2017) e muito de O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, 2006), que com certeza é a maior comparação a se fazer porque sim, a Baronesa, interpretada por Emma Thompson, é basicamente uma Miranda Priestly pior, e as histórias se parecem, mas é o tipo de cópia bem feita, já que Aline Brosh McKenna, já citada roteirista, também esteve no roteiro de O Diabo Veste Prada e, querendo ou não, quando existe um tipo de personagem icônico, quando algo parecido for feito depois, serão inevitáveis as comparações.
Mas as semelhanças param mais ou menos na metade do segundo ato, já que Miranda nunca matou ninguém e Andy nunca tentou destruir a carreira de Miranda na dita referência.
Em sua jornada de humilhar a Baronesa e se elevar, a protagonista vai entendendo aos poucos como encontrar um equilíbrio e um limite para essa sua Cruella interior, que vinha sob controle com seus roubos e golpes. Ela tentou ser uma boa Estella, mas precisou ser uma Cruella para se vingar e na verdade abraçar sua verdadeira natureza, que é sim, genial e criativa, porém nunca deixa de ser agressiva, arrogante e psicótica. Uma boa sacada do roteiro, você pode não gostar dela, mas com certeza vai gostar menos ainda da Baronesa e vai querer que ela se dê mal.
Definitivamente não é fácil ficar do lado de Cruella, ainda mais quando ela maltrata Gaspar e Horácio, que nessa versão não são capangas contratados, mas seus irmãos de criação, que continuam com ela justamente por sua boa e duradoura relação até o momento, tentando compreender as razões da amiga, sem deixar de questionar a transformação que a tornou uma mulher rude e gananciosa, diferente da Estella que conheciam.
Os dois são um excelente alívio cômico e tem uma ótima dinâmica, mas, assim como o resto das personagens secundárias, estão ali em função da protagonista e acabam sendo rasas, e algumas mereciam um pouco mais de tela como Anita, que poderia ter algum diálogo sobre a repercussão das manchetes do jornal, ou Artie, estimulando a paixão por print animals (estampas de animais) de Cruella, já que ambos são muito cativantes.
Está aí inclusive uma das coisas que faz falta no filme, a paixão de Cruella por estampas animais, mesmo que falsas. Um traço de sua personalidade que seria interessante de explorar e compor em suas roupas. Alguns podem sentir falta da piteira da personagem, mas de um modo geral Cruella parou de fumar nas mídias recentes da empresa, então já acho que foi inesperado ela aparecer bêbada no filme.
Acredito que o que mais enfraquece o filme seja ele se perder em referências, algumas melhores do que outras, mas que podem acabar atrapalhando seu ritmo se não forem bem encaixadas ou só estiverem lá para preencher uma certa cota de coisas que precisavam ser citadas ou para agradar os fãs da animação, já que o filme como já dito, não vai se encaixar com ela como se pensava.
E sobre a cena pós-crédito, que vi comentários sobre ser forçada, depois de alguns segundos me peguei pensando: ué, por que não? Afinal como está nos créditos, todo animalzinho merece um lar.
Cruella tem escolhas criativas que vão dividir a opinião dos fãs, mas consegue criar uma história nova e interessante com uma personagem já conhecida do público para um filme que poderia sim ser mais curto, mas tem um roteiro muito bem fechado, uma direção de arte chamativa que é a cereja no bolo de seu entretenimento, cachorros carismáticos e uma protagonista diabolicamente charmosa, o suficiente para garantir uma já confirmada continuação.
O filme não vai agradar a todes, mas para quem era majoritariamente odiada pela população mundial, com certeza é um progresso, parabéns Cruella.
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Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.