Trama Fantasma – Um amor terrível

Em uma cena de Trama Fantasma (Phantom Thread, 2017), a jovem Alma (Vicky Krieps) tenta convencer a irmã do costureiro de luxo Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), por quem ela está apaixonada, a permiti-la fazer um jantar surpresa para ele. Sua interlocutora, porém, não lhe dá qualquer espaço, argumentando que “não é o momento adequado para surpresas”, “estou tentando amá-lo do jeito que eu quero”, reage Alma.

Como em muitos momentos do novo filme de Paul Thomas Anderson, diretor de Sangue Negro (There Will be Blood, 2007) e Magnólia (Magnolia, 1999), o embate ilustra as forças que se atritam em uma casa que comporta vestidos feitos sob medida para aristocracia britânica da década de 1950, refeições lentas e silenciosas e indissolúveis tensões familiares. O primeiro relashionship movie do diretor americano desde Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002), construído como um longo flashback a partir das lembranças de Alma, acompanha as perturbações que a garçonete traz para a vida de Reynolds; se ela quer amá-lo do seu próprio jeito, ele prefere prosseguir com uma vida perfeitamente orquestrada, na qual não há espaço para negociações ou tempo para confrontações matinais.
Nosso protagonista, portanto, desconhece os preceitos mais básicos de um relacionamento. Já na primeira conversa íntima com Alma, a quem conhece numa lanchonete de beira de estrada, ele chega a dizer o chavão de que é “um solteirão convicto”. A todo o tempo somos inevitavelmente levados a detestar seu comportamento caxias e controlador; seu sobrenome (Woodcock) sugere algo como uma masculinidade estoica e agressiva. Paul Thomas Anderson, contudo, opta por um caminho bem diferente do tradicional Pigmalião (o homem que enche de sofisticação a moça pobre e ingênua); desde o início, temos uma Alma encantada e curiosa com a possibilidade do amor romântico, mas ao mesmo tempo impetuosa e disposta a correr riscos para se provar uma força a ser reconhecida naquela relação.

O filme de PTA apresenta, então, elementos bastante familiares (houve quem disse que Trama Fantasma também poderia se chamar simplesmente “Casamento”), mas ganha charme e complexidade com o suspense impulsionado pela direção suntuosa e controlada (a câmera faz suaves movimentos circulares que demoram a mostrar o que está escondido no plano da cena, há certo cuidado ao retratar objetos específicos que serão manipulados pelos protagonistas), pela trilha composta por Jonny Greenwood (um espécie de barroco minimalista, conduzido por um piano-e-cordas que evoca um romantismo transcendental e um drama iminente e que só se ausenta em diálogos especialmente tensos ou íntimos) e, claro, pela atuação do trio principal.
Em sua alegada última performance no cinema, Day-Lewis (indicado ao Oscar de melhor ator pelo papel) desaparece totalmente, dando lugar a um artista cínico, intolerante, arredio e surpreendentemente vulnerável. O britânico tem uma voz baixa e monocórdia, senta-se curvado e sempre oferece um olhar por sobre os óculos que lembra aquelas olhadas de coordenadora do jardim de infância. Lesley Manville (também uma possível oscarizada, desta vez na categoria de melhor atriz coadjuvante) também não interpreta uma figura afetuosa. Cyril, irmã de Reynolds, é uma mulher classuda e pragmática, que atua como uma espécie de mãe substituta para o personagem de Day-Lewis. Seus olhares são expressivos de uma forma incômoda e autoritária; o que o irmão tem de apatia e desinteresse (seus únicos amores são seus vestidos, sua rotina e sua mãe morta, afinal), ela tem aspereza e liderança. Num primeiro momento, ela parece apenas compreender e respeitar as excentricidades diárias de Reynolds, estando totalmente em sincronia com o estilista. Num outro, com apenas a ajuda da performance da atriz e de algumas falas espinhosas, percebemos que na verdade é ela quem está no controle da vida do irmão e da casa. “Não tente brigar comigo, você não sairia vivo”, ela diz ao nosso protagonista, a certa altura, com polidez e tranquilidade.
A personagem da atriz Vicky Krieps é outro ponto forte, sem o qual a trama dificilmente teria o mesmo peso. Apesar de sofrer a pressão de contracenar com quem provavelmente deve ser o melhor ator vivo, a luxemburguesa encarna Alma com uma ferocidade contida, jamais permitindo que sua personagem fosse simplesmente uma imigrante pueril, talvez a via mais fácil. A jovem é a peça desestabilizadora do cotidiano de Reynolds (ele já teve outras moças sobre seu comando, é claro, a quem sua irmã tratava logo de descartar assim que ambos se cansavam delas, mas nenhuma tão indômita); a tensão torna-se subitamente palpável toda vez que ela entra em cena e isso muito se deve a atuação de Krieps, com seus risos nervosos e sobrancelhas franzidas. Sua presença impede que a trama seja lida com uma chave demasiadamente fácil (como relacionamento abusivo, por exemplo). Ela não quer simplesmente ser notada, ou ter seu amor retribuído, mas experimentar o poder que Woodcock parece exercer.
Todos os outros aspectos do filme (como a fotografia um tanto nebulosa, a edição de som curiosamente impactante, o design de produção arrojado e elegante) contribuem para adicionar camadas substanciais à história de um amor terrível, que começa em território há muito desbravado (um artista excêntrico, uma garçonete adorável, os percalços de uma relação) e segue a um rumo sombrio e quase absurdo. Há muitos temas trabalhados aqui (um sofrimento edipiano, a rotina de um criador, a falsa dignidade da aristocracia, os desafios do casamento), mas o mais impressionante é notar como Paul Thomas Anderson consegue hipnotizar a audiência, abordando um drama romântico que está fatalmente presente na vida de qualquer pessoa.