Raya e o Último Dragão – O “nós” acima do “eu”

Depois de Soul (2020) ser lançado no ano passado, imaginei que a próxima animação da Disney como empresa  (já que Pixar Animation Studios e Walt Disney Animation Studios, ainda são estúdios separados) seria um filme mais leve e divertido, mas o que encontrei ao assistir Raya e o Último Dragão (Raya and the Last Dragon, 2021), foi um filme mais simples, com muita ação, mas que traz um tema muito complexo e atual.

Raya estreou dia 5 de março nos cinemas e no Disney+ com o temido Premier Acess, elefante que já vamos tirar da sala. O Premier Acess já tinha sido usado lá fora, se não me engano, com Soul e Mulan (2020), mas com Raya foi o primeiro filme com o qual a plataforma de streaming testou a mecânica aqui em terras brasileiras. A ideia é simples, não pode ir ao cinema pelo motivo que for? Alugue o filme e veja na sua casa! Ou espere um mês para sair de graça (para assinantes)! Até aí tudo bem, não é? É algo justo, o problema veio com o preço: R$ 69,90. Um valor que, além de elitista, vamos combinar, é muito alto para não assistir a um filme no cinema. Se o Disney+ quiser que a estratégia dê certo por aqui vai precisar rever esse valor.

Deixando dinheiro de lado e indo para o filme.

O filme conta a história de Raya, uma princesa guerreira que vive em um reino chamado Kumandra, mas que há 500 anos se dividiu em cinco tribos, por conta de uma tragédia. As pessoas viviam bem e felizes na companhia de dragões, até que os Drunn surgiram, seres disformes, frutos da discórdia humana, que transformam aqueles que tocam em pedra. A praga atacou humanos e dragões, até que a última dos dragões, Sisudatu, criou a joia do dragão, que expulsou os Drunn e trouxe os humanos de volta, mas ela própria sumiu e os demais dragões continuaram petrificados.

A joia foi disputada pelos humanos, que logo se dividiram nas tribos, Presa, Coração, Coluna, Garra e Cauda. Coração foi a que ficou com a joia e a protegeu, essa é a tribo de Raya, e para proteger o artefato é que ela foi treinada. Porém, quando ela ainda era criança, a joia foi destruída, trazendo os Drunn de volta e os pedaços da joia divididos entre as tribos, o que acarretou em seu próprio pai se tornar pedra. Agora, seis anos depois, Raya quer encontrar Sisu e juntar os pedaços da joia do dragão para poder trazer seu pai de volta.

O filme foi dirigido por Don Hall, antigo na empresa, e Carlos López Estrada, que vem chegando agora, e co-dirigido por Paul Briggs e John Ripa, também veteranos na Disney. Os 4 participaram do roteiro, mas as figuras principais neste foram Qui Nguyen, roteirista de The Society (2019), e Adele Lim, roteirista de Podres de Ricos (Crazy Rich Asians, 2018). E, olhando com calma os nomes dos envolvides, é possível perceber que existem pessoas de origem asiática em praticamente todos os setores.

Tecnicamente falando, o filme é perfeito. A cada filme da Disney a tecnologia dá um salto e Raya é muito real. A qualidade gráfica, a movimentação das personagens, as texturas, tudo impecável. O único porém seria que, assim como em todos os filmes da Disney, não importa de que distância uma personagem caia ou seja arremessada, ela nunca ficará ferida. Cada frame do filme pode ser usado como protetor de tela, a direção e a fotografia trabalham muito bem, deixando o filme dinâmico e bonito. Me encantei com a animação dos rostos das personagens e suas expressões faciais, personagens inclusive que foram modeladas inspiradas nos rostos de suas vozes originais. Raya tem um corpo de lutadora, definido e preparado para o combate, sua contraparte Namaari então, nem se fala. As lutas são muito bem coreografadas, bem feitas e a trilha sonora é peça chave na imersão.

O visual de Sisu, mesmo que tendo desagradado a muites, foi bem fiel ao que se espera de um dragão oriental. Me agradou o visual dos dragões de um modo geral, possuem cílios grossos e diversos tons de azul pelo corpo, devido à associação forte com a água. Os olhos, de um modo geral, tem uma função grande no filme. Sisu tem olhos grandes e brilhantes sempre, mostrando como é sonhadora, e esse olhar se repete quando o Chefe Benja, pai de Raya, fala sobre unir as tribos de novo ou quando Namaari vê Sisu ou quando Raya enxerga o potencial de Sisu, e um brilho que não havia em seus olhos desde a infância retorna.

Eu assisti ao filme duas vezes, primeiro legendado e depois dublado, e os dois trabalhos são de muita qualidade, feitos com muito cuidado, ambas excelentes. Mas foi possível reparar algo que também comentei no meu texto sobre A Caminho da Lua (Over the Moon, 2020), a voz original se preocupa em trazer um elenco com mais representatividade, enquanto na dublagem, não existe essa preocupação, provavelmente por não existirem tantos dubladores de ascendência asiática, então custaria caro capacitar pessoas para isso,e a Disney, neste caso, não quer se dar ao trabalho. O que não diminui o trabalho dos dubladores que estão no filme.

Falando agora sobre a história do filme em si, ela é simples, muito simples, mas acho que sua beleza está em ser sim essa história simples e clichê, mas muito bem trabalhada. A história que mencionei acima sobre a joia do dragão acontece em um flashback logo nos primeiros minutos de filme, o que faz com que a obra tenha dois ou três começos, levando em conta que a história do desaparecimento dos dragões também tem sua própria sequência – belíssima, diga-se de passagem, simulando teatro de sombras – e talvez seja uma introdução muito longa, mas pessoalmente prefiro mais esse formato do que pequenos  flashbacks ao longo do filme, que tem um ritmo acelerado já que é um filme de ação, de assalto. Raya e seu grupo estão sendo perseguides, então precisam conseguir o que precisam bem rápido. Ah, e esqueça músicas se você ainda estiver esperando por isso, é um filme de luta, que, como diria Whindersson Nunes, quando acaba o filme, fica o cheiro de pêia, de cão queimado, de couro queimado no meio do mundo.

Como já mencionei é uma obra complexa, com diversos gatilhos e muita política, onde é possível identificar muitos paralelos com a nossa atual situação de pandemia. Nela usam a palavra “confiança” para expressar do que o filme fala e o que as personagens querem dizer, mas na realidade é algo muito mais complexo, seria a confiança de diversos modos e gravidades, indo desde o micro, no pessoal da protagonista, até o macro, quando se fala de toda a sociedade, pensar no coletivo ao invés do individual, do unir ao invés de separar. Me remeteu bastante à questão que vem acontecendo de alguém  quebrar o isolamento social por não aguentar mais ficar em casa, sem se preocupar em transmitir covid para outras pessoas.

Isso traz certas nuances para a história, que pode parecer muito monotemática – até porque em certo momento as personagens não param de repetir “confiança” -, mas vemos que Raya tem uma jornada com perdoar Namaari, que traiu sua confiança quando eram mais novas, mas também com confiar em outras pessoas que não sejam ela mesma de um modo geral. No fim, o vilão do filme é o próprio antagonismo entre as tribos, a desunião daqueles povos. Namaari está ali sim como uma rival, mas também como um reflexo de toda essa questão.

Sobre as personagens, Raya é uma princesa guerreira, não a primeira da Disney, vale lembrar sempre de Kidagakash, Kida de Atlantis: O Reino Perdido (Atlantis: The Lost Empire, 2001), que já era uma lutadora de mão cheia,  e que princesas que lutam tem se tornado mais comum até para romper estereótipos, como Darling em Ever After High (2013-2018). Raya é amargurada, focada, desconfiada, auto centrada e muito prática, como já demonstra em suas cenas criança, e que não tem um propósito nobre, na verdade é até bem egoístas, ela quer apenas salvar seu pai. Mas enquanto segue sua jornada, vai percebendo que sua dor é a mesma de várias outras pessoas (lembrando de novo uma certa pandemia onde temos muitas pessoas de luto) e vai, sem perceber, se unindo a essas pessoas, porque é o que todo aquele povo precisa, se unir, porque os Drunn atingem a todes, cada vez mais pessoas se tornam pedra e se não forem impedidos logo, não sobrará mais ninguém.

Em contraponto a Raya temos nossa coadjuvante Sisu, completo oposto da protagonista. Sisu é quem realmente tem a personalidade de uma princesa da Disney como estamos acostumades, seu jeito inclusive me lembra muito a Rapunzel de Enrolados (Tangled, 2010). Sisu é, como dizemos, dada. Com seu ar otimista, sempre querendo acreditar e confiar nas pessoas, com seu olhar esperançoso e sonhador, tudo o que Raya e todo aquele povo não são.

Inclusive, vi que alguns se perguntaram pela internet porque Sisu pode ser um dragão engraçado e Mushu não podia. Ainda vou falar sobre os países que inspiraram o filme, mas o principal é: o dragão é uma figura sagrada e mais especial nesse sentido na China, ainda mais relacionado com uma grande lenda/figura histórica do país como Mulan, não significa que seja assim na Ásia inteira, que é um continente enorme, seria como pensar que na América do Sul só se fala espanhol ou que o português brasileiro e o de Portugal são a mesma coisa.

Sobre o polêmico design dela, planejo gravar um vídeo para o meu canal (olha o merchan) falando um pouco sobre escolhas de design da Disney ao longo dos anos, mas, de um modo geral, surgiu certo desconforto nas pessoas por ela ser uma criatura tão fantástica em um mundo tão realista, com gráficos muitos reais, enquanto ela é estilizada. A mim não incomodou porque achei que a ideia era justamente essa, Sisu não se encaixa nesse mundo de diversas formas, seja por ser um dragão ou por ter uma mentalidade e visão de mundo totalmente diferentes, então, talvez quisessem que ela parecesse irreal naquele lugar (e boa para vender bonecos), mas, com certeza, entendo quem se incomoda com isso.

As outras personagens que acompanham nossa heroína são pessoas de cada uma das tribos aonde Raya vai e acaba chamando para o grupo e confiando sem perceber, quando nota que compartilham o mesmo sofrimento, e, assim como cada tribo, têm características únicas, diferentes. Cada um possui um talento, algo a oferecer que torna aquele grupo forte. Estão ali para obviamente representar Kumandra como um todo. Além disso, também possuem idades variadas, até para mostrar como a praga dos Drunn os afetou de alguma forma. 

O primeiro que conhecemos é Boun, de Cauda, ele tem um barco restaurante que gerencia desde que perdeu a família, o que o forçou a trabalhar. A segunda é Noi, de Garra, ela é um bebê que perdeu a mãe e acabou sendo cuidada por um grupo de ongis (um tipo de macaco) e se tornou uma ladra, vivendo na rua (apesar de parecer bizarro, eu adorei ela, ainda mais por parecer muito com a Mônica da Turma da Mônica). Tong é o terceiro, de Coluna, um guerreiro de meia idade que perdeu literalmente tudo e vive sozinho, com saudade de sua vida como era antes.

E por último, mas com certeza a mais importante,  Namaari, de Presa, uma das melhores personagens e que obviamente vai se tornar uma aliada em algum momento, mas nem se preocupe porque isso demora bastante. Ela é a única que tem uma relação prévia com Raya. As duas são muito parecidas, a diferença principal sendo a criação. O pai de Raya queria ensiná-la sobre união, sobre conciliar as tribos e mudar as coisas, ele tinha muita fé nesse sonho (já dizia Cinderela) enquanto Virana, mãe de Namaari, a ensinou a competir, ser melhor e a tornar Presa superior as outas tribos. As duas acabam tendo uma relação de “aminimigas”, no melhor estilo Felina e Adora de She-Ra e As Princesas do Poder (She-Ra and the Princesses of Power, 2018-2020).

Mas definitivamente as tribos são o maior atrativo do filme, são lugares claramente muito ricos e ficamos querendo mais deles, mas, pela urgência do filme, não existe tempo. Contudo é possível perceber uma bela construção de mundo, criando muitas diferenças e semelhanças. Cauda é um deserto dominado por mercenários, Garra um mercado flutuante cheio de mercadores e trapaceiros, Coluna uma floresta gelada de bambu com guerreiros ferozes onde pouca coisa cresce, Presa é a de maior desenvolvimento tecnológico, o metal na tribo é trabalhado de um modo muito mais sofisticado do que nas outras, além de dar a entender que é um lugar disciplinado e Coração é o reino mais próspero, tendo tudo, é o lugar mais verde e com maior abundância de recursos.

Algumas coisas como a cultura das tribos, mas também os seis anos que Raya passa sozinha, são pouco explorados, mas não prejudica a história do filme em si. Gosto muito de como a comida é trabalhada, de um jeito farto e para unir as pessoas ao redor de uma mesa, um gesto tão simples e tão importante. A magia na história foi bem dosada, ela não é a solução para tudo e é apresentada de um modo que é possível entender que os dragões na verdade tem muitas limitações  Além da importância da água o tempo todo, ela é a vida e a única coisa capaz de repelir os Drunn.

Agora entrando no assunto da representatividade, Kumandra é inspirada nos países do sudeste asiático, que são Brunei, Camboja, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Singapura, Tailândia, Timor-Leste e Vietnã. São muitos lugares para serem representados. Com muitas visitas aos países inspirados, o que resolveram fazer foi criar esse lugar específico e juntar essas culturas. A partir daí já seria algo a ser debater o quanto adaptar e até onde a adaptação deve ir.

Se esse é o melhor jeito de se fazer e se ficou bem representado, é algo discutível, esse acumulo pode dar certo ou fazer uma estranha salada. Obviamente muitas pessoas de ascendência asiática se pronunciaram sobre isso e até onde vi as opiniões ficaram divididas, vi um comentário do tipo “esse filme deixou meu coração filipino feliz”; Leo Hwan comentou no twitter elogiando o design das personagens, mostrando a diversidade de corpos e cores da Ásia, mas em compensação vi um ilustrador da região apontando diversas coisas que poderiam estar no filme – o que comparado as críticas de representações ruins de Mulan é um progresso em pouco tempo – e dos poucos consultores; Luisa Oguino no BuzzFeed questionou se esse tipo de representatividade era o melhor, misturando elementos específicos de cada lugar, nenhum estaria bem representado de fato.

A discussão me lembrou de algo que a Disney já fez de modo parecido, na série Elena de Avalor (Elena of Avalor, 2016-2020), que traz a primeira princesa latina da empresa. Criaram o reino fictício de Avalor juntando várias características de diversos países da América Latina. Não terminei de ver a série, mas gostava bastante e mexe nesse mesmo ponto, sendo talvez a diferença maior com Raya, além de ser uma série, que Avalor possui muitos elementos fantásticos não necessariamente ligados com a cultura dos lugares que servem de inspiração, existe algo próprio e criado e teve mais tempo para trabalhar, sempre com consultores presentes.

E claro, a obra que todes que assistiram Raya e o Último Dragão lembraram foi Avatar: a Lenda de Aang (Avatar: The Last Airbender, 2005 – 2008), por conta dos povos divididos por cores e uma figura que precisa unir todas as pessoas – não que Avatar tenha criado esses tropos, mas os utiliza muito bem, tanto que é muito marcante até hoje -, mas em Kumandra, sinto outra energia. As pessoas de lá possuem muitas semelhanças, se separaram por motivos gananciosos, mas não querem se dominar, querem progredir separados para demonstrar superioridade enquanto os povos de Avatar além de muito distintos e diferentes, brigam para se entender sobre qualquer assunto basicamente, existe uma vontade de se impor como melhor perante o outro, mas com uma certa dominância.

Em Avatar também, o Reino da Terra é inspirado no sudeste asiático, tal qual Raya, e continua sendo assim até hoje, como foi em Avatar: A Lenda de Korra (The Legend of Korra, 2012-2014), em O Último Mestre do Ar (The Last Airbender, 2010), que levantou muitas dessas questões com seu elenco e como ainda é até hoje em livros e HQs que ainda são publicados. Sim, caro leitore, se você, assim como eu, ama Avatar, mas não acompanha muito notícias, talvez não soubesse disso, eu mesma soube há poucos meses, o motivo de essas novas histórias serem pouco populares por aqui é porque nunca foram lançadas em português, mas graças ao Mundo Avatar, que as traduz gratuitamente, podemos ter algum acesso na nossa língua. Mas voltando ao assunto, o Reino da Terra foi retratado assim nessas obras até agora e com certeza ainda será na série live action da Netflix e nas futuras obras do recém anunciado Avatar Studios.

Essa discussão provavelmente vai continuar e não sei se existe uma resposta certa. Para mim, seria estimular o mercado de animação por lá para que filmes sejam produzidos no próprio sudeste asiático. As melhores animações sobre a China atualmente são as do Pearl Studios – como A Caminho da Lua -, por ser um estúdio chinês, com pessoas chinesas.

Para finalizar, já lanço aqui a previsão que muitos outres já devem ter feito também, mas logo menos deve ser anunciada uma série derivada de Raya e o Último Dragão, provavelmente mostrando o processo de restauração de Kumandra que não aconteceria do dia para a noite, existe muita mágoa entre aquelas pessoas. O universo tem potencial de sobra para isso e imagino que venha a ser uma série boa, já que a Disney vem testando esse tipo de coisa, em Enrolados Outra Vez/As Enroladas Aventuras da Rapunzel (Tangled: The Series, 2017-2020) tivemos praticamente um romance entre Rapunzel e sua melhor amiga Cassandra, e a já mencionada Elena de Avalor, então tudo leva a crer que logo poderemos explorar Kumandra com muito mais tempo e detalhes, contando, espero, com um belo time de consultores.

Raya e o Último Dragão é um lindo filme em todos os aspectos, ao mesmo tempo em que traz uma história tão simples, com certeza marca uma nova era para as princesas da Disney, além de talvez anunciar uma nova onda de filmes complexos com temas sérios sem deixar o lado infantil de lado por parte tanto da Disney Animation quanto da Pixar.

No mais, já estou esperando a série derivada para poder ver mais de Raya e Namaari juntas, viu Disney+?


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