Noughts + Crosses – Uma mudança de perspectiva necessária

 

“A raça é um elemento de naturalização da morte do outro.” – Silvio Almeida

Reimaginar a nossa realidade é algo comum no entretenimento. Filmes e séries utilizam dessa narrativa para subverter alguns valores normalizados por nós, assim provocando discussões e análises a respeito do que é considerado normal  na nossa sociedade. Recentemente, o filme francês Eu Não Sou Um Homem Fácil (Je ne Suis pas un Homme Facile, 2018) e a série Hollywood (2020 -)  demonstraram bem a repercussão que as pautas sociais tiveram no audiovisual. O primeiro é sobre um homem machista que acorda de repente em uma realidade matriarcal, onde os privilégios masculinos pertencem as mulheres; e o segundo imagina como seria a cultura pop e o mundo se nos anos 40 negros, mulheres e homosexuais tivessem tido a oportunidade de protagonizar grandes filmes em Los Angeles.

Com o sucesso bilionário de Pantera Negra (2018) essa reimaginação de realidades alternativas ganhou novas perspectivas e questionamentos. O olhar do preto sobre os acontecimentos históricos juntamente com o protagonismo da cultura africana validado financeiramente, permitiu que novas análises de mundo fossem criadas. A Netflix está na dianteira quando se trata de séries produzidas na África do Sul, com o lançamento de Blood and Water (2015 -) e Queen Sono (2020 -). Porém,  Amazon, HBO e outros produtores de conteúdo também estão investindo em propriedades intelectuais e adaptações africanas, sendo Noughts + Crosses (2020 -) a mais recente aposta da BBC nessa tendência de mercado, propondo a seguinte reflexão: E se a África tivesse dominado a Europa e os brancos que fossem escravizados?

A série, lançada no início de 2020, é baseada na pentalogia de livros da autora britânica Malorie Blackman. A trama, composta por 6 episódios, conta a história do amor proibido de Sephy (Masali Baduza) e Callum McGregor (Jack Rowan).

Nessa realidade o Império Apricano invadiu a Europa. Aprica colonizou o continente e chegou até Albion (Reino Unido) que, desde então, vive sobre as regras apricanas. A série começa anos depois do fim da escravidão dos europeus pelos apricanos sendo ambientada durante um período de segregação racial, onde os pretos são chamados de Cruzes e os brancos são denominados de Zeros. Essa segregação é evidente quando apenas Cruzes ocupam cargos de poder nas sociedade, desde policiais até políticos, e os Zeros vivem na pobreza, com trabalhos braçais mal remunerados e instáveis.

Sephy é um preta filha do influente político Kamal Hadley (Paterson Joseph), enquanto Callum é um branco que, ao se alistar no exército, busca mudar a situação do seu povo por dentro do sistema. 

A construção de mundo do seriado é fantástica. Apesar de se passar no século 21, a influência cultural e arquitetônica africana mudou drasticamente o design de Londres. Por retratar um período de segregação racial onde a relação interracial entre pretos e brancos é proibida, o rio Tamisa marca a divisão espacial da cidade, sendo o lado sul habitado pelos Zeros e o lado norte pertencente aos Cruzes. 

A principal representação desta desigualdade é a gigantesca estátua de bronze existente no lado norte do rio, com design claramente inspirado no monumento da renascença africana inaugurado em 2010 no Senegal. 

Cidades são espaços políticos e sua organização é feita de uma maneira que demonstre quem exerce dominação e é importante naquele território. Erguer  monumentos é uma ótima maneira de homenagear o passado de uma civilização, afinal, estátuas são construídas com o objetivo de contar uma história e essa manutenção da memória permite que a hegemonia cultural esteja sempre em foco, fazendo com que as pessoas entendam e não esqueçam o seu lugar dentro dos centros urbanos.

O figurino é outro ponto alto da série. Ele segue as tendências de moda africanas enquanto contrasta com a cultura originária da Europa. As vestimentas dos Cruzes são coloridas, imponentes e expansivas, algo que já vimos em Pantera Negra; enquanto os Zeros vestem uma roupa mais suja, com cores lavadas, familiares ao que o espectador já está acostumado.

Infelizmente, por possuir apenas 6 episódios,  a série não consegue investir completamente na sua construção de mundo. O público tem uma noção mínima do panorama geopolítico, mas nunca mergulha a fundo nas possibilidades que 700 anos de imperialismo apricano causaram no continente africano e em suas colônias europeias. Entretanto, como o programa tem como foco o relacionamento de Sephy e Callum, juntamente com o desenvolvimento de suas famílias, essas escolhas são compreensíveis, porém, com uma realidade alternativa tão instigante e repleta de possibilidades é um pouco frustrante o número reduzido de episódios no seu primeiro ano.

No quesito atuação, todos os atores estão muito confortáveis nos seus papéis, em especial Paterson Joseph e Jack Rowan. Provavelmente, por já terem trabalhado em séries mais consagradas do que seus colegas, como The Leftovers (2014 – 2017) e Peaky Blinders (2013 -), respectivamente, esses dois conseguem passar suas emoções apenas no olhar, entregando ótimos diálogos durante toda a temporada. 

Ao inverter as questões raciais do nosso dia a dia, a série busca promover uma reflexão e quebra de realidade para o espectador branco. Assim, a brutalidade policial contra brancos e a manipulação da mídia na construção do imaginário social do caucasiano criminoso, pobre e violento são algumas das ideias desenvolvidas na temporada. Isso, juntamente com o movimento de libertação branca que luta pela independência de Albion e o uso de meios acadêmicos para justificar a superioridade e dominação preta, permite que o público branco tente imaginar como seria viver numa realidade como essa. 

No nosso mundo, quando se trata da luta antirracista é fundamental que os brancos se engajem também. Como detentores de cargos de poder, sem o seu auxílio os pretos continuarão resistindo e avançando com duras perdas, porém sem mudar o sistema  completamente.

Para superar o racismo é preciso entendê-lo primeiro. Como ele se comporta, como se apresenta na sociedade e como todos os processos sociais possuem uma lógica racista. Isso é evidente já que a sociedade brasileira tem o racismo como um dos seus alicerces base. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão na América Latina e mesmo depois de proibida os pretos não receberam nenhum auxílio ou indenização pelos séculos de trabalho e sofrimento, envoltos de etnocídio e genocídio. 

Com isso, os ex-escravos foram largados à própria sorte, aglomerando-se em favelas e regiões precárias, não podendo construir uma vida minimamente digna no país que os sequestrou da sua terra natal. Como se já não bastasse a falta de ajuda, um processo de tentativa de embranquecimento da população brasileira foi instaurado no país, com o incentivo do governo para que imigrantes europeus viessem para o Brasil e aqui se estabelecessem como mão de obra assalariada, além de receberem terras do estado.

Por isso, é preciso entender o processo histórico da formação do seu país, para assim, perceber o racismo estrutural e sistêmico instaurado em tudo que existe.

Vale lembrar que essa pauta é recente no debate político. Apesar de terem existido resistências pretas durante a escravidão, o preto legalmente só está livre a 132 anos no Brasil, sendo essa quantidade de tempo nem metade da totalidade de anos que a escravidão durou. Algo básico como o direito ao voto não era possível até 1934, por exemplo. Portanto, é imprescindível que os privilegiados tentem ver o mundo por outros olhos, fora da sua zona de conforto. Não adianta usar hashtags e demonstrar interesse apenas no mês da consciência negra. A luta antirracista é constante, porque o racismo é constante. Diante disso, apesar das discussões iniciais estarem sendo feitas através do entretenimento, devido a educação brasileira precária, é importante buscar educar-se politicamente de maneira mais aprofundada posteriormente, através de autores pretos como Lélia Gonzalez, Angela Davis, Silvio Almeida e Bell Hooks. Além de seguir influenciadores negros nas redes sociais para que esse assunto sempre esteja presente no seu dia a dia e para perceber quando o revisionismo histórico está sendo aplicado.

Na série Cosmos, somos apresentados a uma civilização do vale do Indo, onde hoje é a Nigéria. Há cerca de 2500 A.C, Mohenjo Daro era composta por uma rede de cidades com população de 5 milhões de pessoas, com redes de esgoto, água corrente na cozinha, dentistas, unidades de medida padrão, escrita, jogos de azar e de tabuleiro. Isso tudo no período onde os gregos eram apenas tribos e comerciantes itinerantes. Essa noção histórica contribui para que a premissa do seriado seja factível e nos permite questionarmos a nossa visão de África.

Por fim, quando uma obra como Noughts + Crosses promove a descolonização do olhar, colocando os negros em posição de poder, tendo orgulho da sua pele e fisionomia essa obra precisa ser divulgada, afinal, estar na pele de um personagem nos permite enxergar o outro com empatia, buscar novas referências e refletir a respeito de como o nosso mundo é organizado. 

As vezes, é preciso mudar totalmente a perspectiva para algumas pessoas terem noção da realidade.


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