Infiltrado na Klan – Apenas a realidade poderia ser tão inacreditável

Na década de 1970, um policial de Colorado Springs, nos Estados Unidos, resolve investigar um grupo local, com ideias de nacionalismo branco, aparentemente ligado à Ku Klux Klan. Esse agente da lei, utilizando-se do sistema de inteligência da corporação da qual faz parte, resolve se infiltrar na organização supremacista. Nada de novo em termos de filmes policiais americanos, não fossem dois fatos: o policial em questão é negro e essa história é real.
Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman, 2018), é filme de Spike Lee e isso já nos diz que questões sociais, sobretudo raciais, serão a pauta de cada minuto da obra, cuja montagem acaba sendo uma verdadeira aula sobre a subjugação da população negra americana que se seguiu ao fim da Guerra de Secessão até os dias atuais.
Em verdade, o Klan, a segregação racial e a indústria cinematográfica americana estão interligados por um contexto histórico muito complexo e o filme não só desenvolve a sinopse citada no parágrafo anterior como nos apresenta um panorama de séculos de história.
Logo de início, ao mostrar uma cena de …E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939), em que vemos Scarlet O’hara percorrer desesperada um campo de guerra proferindo a frase “Deus salve a confederação”, a obra diz o tom que será adotado. Em seguida, vemos uma sequência em que Alec Baldwin interpreta um apresentador americano, provavelmente dos anos 60, que tem dificuldades de oratória e ensaia a melhor forma de narrar a violência que acha que acontece com a população branca do país naquela época: integração e miscigenação, forma de aniquilação de seu povo. Ao fundo da tela, aparecem algumas cenas do filme O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), considerado o primeiro grande filme americano e que trata da guerra civil dos EUA.
A mensagem dessa sequência é direta: as narrativas apresentadas pelos meios de comunicação, mais especificamente cinema e televisão, são racistas. Mais que isso, fomentam a construção de uma percepção de eventos históricos que vangloria práticas racistas, silenciando a versão da população negra e criando uma mitologia a seu respeito que marginaliza essa comunidade, para dizer o mínimo.
Cena de “… E o Vento Levou” (Gone with the Wind, 1939)
A escolha de Alec Baldwin para essa introdução é peculiar. O ator faz parte do elenco de Saturday Night Live, onde faz uma sátira do atual presidente, Donald Trump, que é reiteradamente acusado de falta de articulação, como o apresentador do filme, e de ser racista, flertando com a ideologia supremacista, também como o personagem.
Passados os primeiros minutos do filme, dá-se início à narrativa central, do policial Ron Stallworth (John David Washington), que, ao ingressar na força policial de sua cidade, passa a ser também o primeiro afrodescendente a compor os quadros da corporação.
Vemos de antemão que essa transição não é nada fácil e acompanhamos os esforços que esse personagem empenha para crescer em seu ambiente de trabalho. Ele começa, depois de alguma insistência, a fazer parte do setor de inteligência, onde conhece Flip Zimmerman (Adam Driver), que se torna seu parceiro na investigação sobre o Klan.
Adam e John David são atores excelentes que nos trazem uma dupla de policiais que vão construindo uma relação de parceria paulatinamente, sem forçar aquela coisa de dupla dinâmica, irmãos para vida, com que nos acostumamos em se tratando de estereótipos de filmes policiais. A relação deles dois é interessante sobretudo porque o personagem de Adam, Flip, é judeu, outro grupo perseguido pela KKK. Por conta disso, vemos como a investigação da qual eles participam acaba por trazer uma jornada de autoconhecimento para ambos, e como a face do racismo não é única.
Compor os quadros da polícia sendo negro é algo por si só contraditório quando o sistema penal de um modo geral, em países marcados por heranças escravocratas, contribui para o encarceramento em massa da população negra. Essa contradição fica clara quando somos introduzidos à personagem Patrice Dumar (Laura Harrier), uma estudante que lidera o movimento negro na Universidade do Colorado e é responsável por trazer provocações ao, sempre inclinado ao cumprimento da lei policial, Ron.
É o mundo que Patrice nos traz que nos faz refletir sobre a luta, ainda que para alguns, radical, do movimento negro para a construção de uma identidade negra não só na sociedade, como internamente, com o estímulo para o melhoramento de uma autoestima individual da pessoa negra e paralela ao desenvolvimento da autoestima coletiva do povo negro. Black Power não é um penteado, Black Power é a busca pela ocupação de espaços de poder a que a comunidade negra não tem acesso, através de meios próprios e necessários.
À medida em que se iniciam as investigações sobre a Klan, vemos como a emancipação do povo negro causa reações conservadoras de pessoas que veem a supressão de sua opressão histórica e a restrição de seus privilégios como ataques aos seus direitos. É nesse contexto que se faz necessário o diálogo que o filme estabelece entre eventos históricos como a Guerra de Secessão, motivada por questões econômicas que giravam em torno da escravidão, e o mercado cinematográfico. Ao final da guerra, a escravidão foi abolida, mas isso não significou que os negros não mais escravizados fossem considerados cidadãos por inteiro. Para assegurar que a integração e o acesso a direitos pelos negros, como propriedade de terra e voto, não acontecesse, surgiu a Ku Klux Klan, mas, em tese, esse movimento foi suprimido poucos anos depois.
Em 1915, o filme O Nascimento de uma Nação foi lançado e fez um estrondoso sucesso. O filme, entre outras coisas, foi responsável pela consolidação do negro como superpredador, homem perigoso, animalesco, dado ao cometimento de crimes contra a propriedade e ao estupro. Enaltecia-se, para o combate desse inimigo da sociedade, o trabalho feito pelo Klan, cujos componentes foram retratados como verdadeiros heróis. Tal filme motivou o ressurgimento da organização que havia sido suprimida meio século antes. Diante disso não é mera coincidência que a bandeira dos confederados esteja presente nos cenários ocupados pelos personagens que integram a organização investigada no filme. Nada mais nobre para quem advoga pela supremacia branca do que “guerreiros” que lutaram pela manutenção da escravatura de pessoas negras.
Em determinado momento do filme, aparece a figura de David Duke (Topher Grace), líder do Klan em nível nacional, que mais tarde veio a engatar carreira politica nos Estados Unidos. A conexão que Ron estabelece com esse líder incrementa o tom absurdo que a premissa da obra toma. Já na época do filme, Duke era uma voz expressiva entre aqueles tendentes à discriminação por raça como algo natural e participou de manifestações em defesa da manutenção de estátuas de confederados renomados. Além disso, ele é conhecido por negar o holocausto, ter declarado que presidente Trump empoderou a sua causa, além de ter elogiado o atual presidente eleito, Jair Bolsonaro, afirmando que “ele soa como nós”.
Spike Lee nos presenteia com a participação de Harry Belafonte, aos 91 anos, nos preenchendo com sua sabedoria. Uma cena difícil, mas cheia de paralelos traçados que são mais do que necessários nos dias atuais.
Esse conto sobre racismo, sobre cinema, sobre o Klan, sobre a luta por direitos civis que é trazido pelas cerca de duas horas de filme encontra arremate em cenas impactantes da realidade americana e faz com o que a obra deixe marcas profundas em seu espectador.
Um soco no estômago. Um nó na garganta. Um grito de despertar. O necessário.