Destacamento Blood – Spike Lee em seu melhor momento

2018 foi marcado pela volta do diretor Spike Lee aos holofotes com o poderoso e incisivo Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman), um filme protagonizado por John David Washington e Adam Driver que trouxe o primeiro Oscar para Lee, que também assina o roteiro. Seguindo nesta linha ascendente, Spike Lee retorna em 2020 com o violento, caótico e imprevisível Destacamento Blood (Da 5 Bloods) contando a história de cinco soldados negros norte-americanos veteranos da guerra do Vietnã, que retornam ao país em busca de um tesouro enterrado.

Se em Infiltrado na Klan, Lee expõe o perigo eminente de um grupo extremista supremacista branco que se mantém vivo nos EUA desde os anos 70, aqui em Da 5 Bloods, Lee é ainda mais urgente ao mostrar as injustiças que o povo preto sofre em solo americano pegando a Guerra do Vietnã como pano de fundo, ao mesmo tempo que traz uma narrativa que mostra de forma bastante direta o preconceito e o racismo evidente na sociedade norte-americana.

A narrativa do filme é interessante por intercalar imagens verídicas inseridas no contexto, ao mesmo tempo em que conta sua trama fictícia, com isto os arcos ganham em autenticidade e peso. O roteiro escrito a quatro mãos separa a trama em duas partes bem definidas, a primeira metade da narrativa desenvolve a história dos veteranos Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e do jovem Norman Blood (Chadwick Boseman), este último aparecendo em flashbacks. A segunda metade foca mais na trama da procura do ouro e, por isso, tem um ritmo mais acelerado e acaba se mostrando mais interessante e inusitada.

O longa tem uma cadência necessária no começo, mas acelera quando precisa na reta final, tudo é proposital para que o público tenha bagagem suficiente para com esses personagens para sentir o impacto do desfecho de cada um na segunda metade. A direção de Spike Lee é precisa, as vezes perde um pouco a mão nas cenas de ação, porém é eficiente o suficiente, tem personalidade o bastante para dizer aquilo que deseja e deixar a mensagem que precisa. A edição deste longa é algo usado anteriormente em outros filmes, mas aqui é uma técnica muito bem utilizada neste contexto, algo que fica evidente nas transições entre passado e presente, enquanto no primeiro temos a tela em um formato de película ampliado por uma fotografia que lembram produções antigas, e o segundo é o formato widescreen digital presente nas produções atuais, tudo muito bem dosado dando um charme único ao longa.

Se a parte técnica de Da 5 Bloods é impecável, tudo fica ainda melhor quando olhamos para o elenco da produção. Este filme não seria nada se não fosse as atuações envolvidas aqui, todas com muita personalidade, podemos destacar aqui Clarke Peters interpretando Otis, que funciona como a voz da consciência dos cinco “bloods” e que dá um equilíbrio aos outros personagens. Outro que tem uma performance bastante consistente é Jonathan Majors no papel de David, filho de Paul, inclusive seu arco com o pai é um dos melhores momentos do filme. Chadwick Boseman também é outro grande destaque aqui, seu Stormin’ Norman respira negritude e seu espírito de luta lembra ícones negros conhecidos ao longo da história norte-americana.

Porém, de todas as atuações já citadas, nenhuma delas chega no nível atingindo por Delroy Lindo na pele de Paul. Está aqui uma performance marcante de um personagem complexo, totalmente afetado pelos horrores da guerra e assombrado pela culpa. Lindo é uma força da natureza, sua presença em cena não só ajuda elevar sua própria atuação, mas de quem está a sua volta. Um de seus melhores momentos é um monólogo antológico no meio da selva em um diálogo inspiradíssimo.

Assim como as atuações, o roteiro é incrível e muito bem escrito, trazendo não só reflexões como também regastes históricos sobre a Guerra Vietnã, sob o ponto de vista de pessoas pretas, se aproveitando a veia crítica de Spike Lee para tecer um paralelo entre as lutas pelos direitos civis dos negros nos EUA nos anos 60 enquanto os mesmos eram recrutados para lutar e morrer por uma guerra que não era deles. 

Destacamento Blood é um filme que toca na ferida sem meio termos, é praticamente Spike Lee dizendo a que veio em cada momento da obra, são várias referências, críticas em uma pauta relevante num momento em que se pede isso, desta forma o longa se torna crucial para mostrar a importância das vidas negras e como ao longo das décadas a luta dessas comunidades se fizeram necessárias contra um sistema que insiste nas injustiças e insiste em não defendê-las apesar da contribuição que essas pessoas tiveram para com a nação dos EUA ao longo de sua história.

De uma forma geral, Da 5 Bloods é Spike Lee mantendo o nível de qualidade estabelecido por sua obra anterior, subindo o nível de urgência das discussões raciais que acabam por coincidir com um momento em que os EUA fervem em protestos contra racismo resultado da violência policial. Este filme é uma obra que presta homenagem a grandes filmes, mas que tem uma personalidade totalmente própria com um ar de novidade ao colocar personagens negros para contar um lado da Guerra do Vietnã normalmente protagonizado por brancos, daí a importância de ter uma pessoa negra dirigindo este tipo de filme, para dar autenticidade sem amenizar o tom crítico.

Este é um dos melhores filmes já produzidos pela Netflix, disso não se tem dúvida, com uma produção caprichada, uma direção apurada, uma trilha sonora espetacular inundadas por músicas do gênio Marvin Gaye e um elenco magnifico, incluindo uma das melhores atuações do ano, Da 5 Bloods é uma das grandes obras do ano, para ser vista e revista, analisando cada ponto, cada referência e para abrir discussões importantes. Spike Lee esta no seu melhor momento como cineasta e este longa é a prova viva disto, mostrando que o diretor só melhora com o tempo, se tornando ainda mais incisivo e ácido na maneira de expor o que pensa em suas obras, que se mostram cada vez mais relevantes para história do cinema.