Mulan – Leal, corajosa, verdadeira e americanizada

Mulan (1998) provavelmente é a animação da Disney favorita de muita gente, então não é a toa que depois do anúncio de um remake em live action os fãs ficaram bem nervosos, tanto no bom quanto no mal sentido. A jornada até ser lançado foi bem atribulada e depois de sair já se tornou um filme “ame-o ou odeie-o”, e para já ser sincera aqui, eu fui uma das que gostou do filme, mas isso não significa que eu não veja os defeitos dele.

Começa que o próprio lançamento do filme foi uma bagunça por si só. Por conta da pandemia de Covid-19 ele foi adiado algumas vezes, até que finalmente foi lançado nos cinemas que já estavam abertos e também diretamente no Disney+, para ser alugado por um valor a parte da mensalidade do serviço, basicamente como se a pessoa pagasse o ingresso de cinema, mas para assistir em casa. O que sinceramente eu não considero uma ideia de todo ruim, dependendo do preço.

Porém, apressada, a Disney fez isso antes de o Disney+ estar disponível em todos os territórios, como aqui no Brasil e no resto da América Latina, então o filme foi praticamente entregue em uma bandeja para a pirataria, o que também deve prejudicar sua bilheteria.

Mas quem disse que esse foi o único problema que o filme se meteu? Antes mesmo de seu lançamento e da própria pandemia muita coisa já estava acontecendo. Começou com algumas informações vazadas de que muitos elementos da animação não entrariam no filme. Não teríamos Mushu, nem Shang e não seria um musical. Os fãs ficaram loucos! Li cada absurdo na internet por conta dos anúncios, desde “isso não é Mulan”, “desrespeito com os fãs” e “vai ser ruim”, como a Disney ainda tem por volta de 15 live actions para estrear, vamos todos lembrar que diferente não é necessariamente ruim, ok?

As mudanças na adaptação vieram como uma tentativa de fazer as pazes com o público chinês, que considera a animação de 1998 ofensiva por diversos motivos, por desrespeitar a cultura, por misturar com outras culturas asiáticas, enfim, desrespeitarem o povo chinês. Mas claro, o público chato ocidental não aceitou a justificativa, já que não girava em torno do umbigo deles. Mulan é uma figura MUITO importante na cultura chinesa, sua história é contada em uma balada (uma espécie de canção ou poesia) muito mais velha do que eu, você ou a Disney, se alguém pode definir o que é ou não Mulan, são os chineses. E isso não impede ninguém de gostas da animação ou do live action, e de revê-los quantas vezes seu coração mandar.

Mas continuando porque sim, mal começamos. 

O filme também se vendeu como uma obra fiel e respeitosa a cultura chinesa e que corrigiria os erros da animação, o que gerou uma expectativa enorme, e, para completar, a atriz Liu Yifei que faz a Mulan no novo filme, decidiu, em meia a uma onda de protestos que estavam acontecendo na China por conta de violência policial, postar uma mensagem de apoia à polícia, o que fez surgir um boicote ao filme no país.

Depois disso veio o coronavírus e os adiamentos, mas como desgraça pouca é bobagem, surgiu uma nova polêmica. Nos créditos do filme, a Disney agradece a vários órgãos governamentais chineses por terem ajudado na realização, incluindo uma agência acusada de violar direitos humanos. É. Obviamente isso gerou uma nova comoção.

Bom, polêmicas cobertas, vamos falar de Mulan (2020). 

Em preparação para o filme, fiz uma mega maratona. Primeiro assisti a animação clássica de 1998, depois sua continuação de 2004 – lançada para homevideo que os frequentadores das famosas locadoras devem conhecer -, para então assistir o de 2020. E para completar, assisti aos filmes chineses mais recentes de Mulan, um também de 2020 e um de 2009 que é bastante elogiado.  Tudo inspirado na balada que conta a história de Mulan, que não se sabe ao certo se realmente existiu. Mas não faltam exemplos de mulheres que se disfarçaram de homem para servir no exército ao longo dos séculos.

A direção de Niki Caro se dá bem com a fotografia de Mandy Walker, em alguns momentos elas não têm medo de brincar e ousar com a câmera, tentando movimentos diferentes. A direção de arte é belíssima, mesmo sabendo que ela não 100% fiel, historicamente falando, é possível ver que houve um esforço de pesquisa que consegue convencer pelo menos a nós ocidentais. As músicas da animação foram incorporadas ao filme como parte da trilha sonora, reinterpretadas em instrumentais muito bonitos.

Na parte da montagem o filme tem mais problemas, alguns cortes ruins e algumas cenas encaixadas em momentos que não fazem o menor sentido, além de alguns ADRs (áudios gravados posteriormente e inseridos na edição) que claramente foram incluídos depois, e alguns CGIs meio feios, mas quando se trata da fênix eles capricham nos efeitos.

O filme bebe um pouco de filmes wuxia, aqueles filmes de kung fu em que os personagens dão vários chutes em pleno ar, parecido com o que acontece em Kill Bill (2003/2004), então a ação pode parecer estranha para quem não conhece o estilo, além de por não existirem muitas armas e equipamentos modernos, muitas cenas são com os personagens pulando e saltando por aí, mas nada impossível, lembrando bastante com parkour.

O filme tem boas atuações e uma boa dublagem e, pelo que vi, todo o elenco tem pessoas de família chinesa, algo positivo, já que alguns filmes estadunidenses misturam pessoas coreanas, japonesas e chinesas, o que eles não gostam. Para muitos isso pode parecer besteira, assim como se um chinês vir um chileno interpretando um brasileiro ele não vai ligar, mas nós sim. Representatividade é importante.

Mas o que todo mundo quer saber é: como esse filme homenageia o filme de 1998 sem o Mushu e sem músicas? Além das músicas incluídas na trilha sonora como instrumentais, a base da história, sua estrutura, é igual a da animação. Primeiro os inimigos chegam, depois vemos toda a história da casamenteira seguida da convocação do pai de Mulan, e finalmente ela deixando a vila com a armadura do pai. Temos o treinamento, depois todos vão para a batalha, sentimos um pouco as mortes da guerra e finalmente chegamos à luta que culmina na avalanche e Mulan se revelando mulher, e enfim os protagonistas vão para a luta final na cidade imperial. Além de algumas cenas, elementos e simbolismos da animação traduzidos na tela, muitas vezes ressingificados e tratados com mais seriedade. O filme segue tanto a estrutura do clássico que até pega defeitos dele, mas de modo geral parece muito mais uma homenagem á balada de Mulan do que para a animação da Disney, e não tem nada de errado nisso.

Sobre ser fiel ou não culturalmente falando, não foi fiel e respeitoso como prometeram. Eu não tenho moral e conhecimento para falar sobre isso, mas não faltaram threads no Twitter e artigos pela internet feitos por pessoas que entendem do assunto melhor do que eu falando sobre isso, então não vou entrar em detalhes para não acabar falando besteira. 

Sem nenhuma pessoa chinesa no roteiro ou na produção, era de se esperar que o prometido não fosse ser alcançado, mas mesmo não sendo super correto, dá uma noção sobre o país e como a ciência e a tecnologia eram avançados em um tempo tão antigo.

Uma inclusão que gostei foi de mostrarem Mulan ainda criança para construir que ela é habilidosa desde pequena, que sempre teve talento para a luta. Até mais do que isso, ela tem o chi, que provavelmente você já ouviu em outras histórias com alguma ligação com a China, mas que não fica muito claro se na mitologia do filme todos o tem e o de algumas pessoas é mais forte ou se só algumas pessoas tem. O ponto é que Mulan é especial e seu chi funciona como um pequeno superpoder, mas sua maior arma ainda é ser inteligente, engenhosa, estratégica.

O treinamento, assim como na animação, acaba sendo a melhor parte. Nessa adaptação sendo ainda mais difícil para a protagonista esconder sua identidade, ela é a última a dormir e a primeira a acordar para tirar e colocar a faixa que prende seus seios, e se priva de banhos por eles serem coletivos, mas quase nunca existe um perigo de ela ser descoberta. Também como no clássico de 98, ela se questiona se está fazendo aquilo apenas por seu pai, ou também por si mesma, mostrando esse poder de ser quem você é, de ser honesta com sua própria natureza.  O roteiro fala sobre como o machismo é ruim para homens também, mas de um modo menor e mais sutil.

Com tantos personagens lutadores, vemos que Mulan é sim, poderosa e habilidosa, mas não é a única, outras pessoas são mais experientes e são capazes de fazer tudo que ela faz e até mais. E temos nossa vilã, a bruxa Xianniang (Li Gong), contraponto de Mulan, mostrando o que ela poderia se tornar, porém é uma personagem muito mal utilizada. Falta uma grande luta entre ela e Mulan, ou ela poderia trair o outro vilão, Bori Khan (Jason Scott Lee), mas fica no meio do caminho, é uma personagem muito boa que não atinge seu potencial.

O que na verdade acontece com todos os secundários, todos pouco trabalhados. Seria muito bom ver mais da irmã da Mulan, são perdidas várias oportunidades de mostrar os amigos dela ajudando e até mesmo o interesse amoroso Honghui (Yoson An) aparece pouco, mas algo bom dele é ter aquele ar bissexual assim como Shang tinha, o que é ótimo não terem tirado e na verdade terem até ressaltado.

Algumas coisas são excessivamente explicadas  e não existe nenhuma cena icônica como na animação, apesar de ter uma mais para o final que é bonita, ela não fica na memória.  A cena do cabelo sendo cortado com a espada não está presente, tanto por cabelo grande não ser uma questão, quanto por não ser possível cortar um cabelo com uma espada, pelo menos não do modo limpo e satisfatório que vemos na animação.

Temos muitas conveniências de roteiro, algo normal de Hollywood, mas nesse filme muitas pessoas assistiram com um olhar bem afiado e não perdoaram quase nenhum desses furos,  talvez por conta da grande expectativa criada, mas me surpreendi de algumas pessoas que aceitam carros andando no gelo não terem aceitado a protagonista lutando de cabelo solto, sendo que todas as heroínas hollywoodianas meio que já fazem  isso.

Também vi recentemente uma matéria (apenas por cima, tenho que admitir que não li o texto completo), cujo título falava sobre como Mulan não rompia nenhum estereótipo e era na verdade um, por mostrar que apenas uma mulher com poderes merece ser respeitada, e não deixa de ser uma interpretação válida. Mas, pra mim, esse ponto é muito mais sobre como uma mulher esconde seu potencial para agradar a um homem ou a uma sociedade. Como mulheres que durante tanto tempo escreveram livros e trabalhos científicos sob pseudônimos masculinos ou mesmo usando o nome de homens próximos para serem aceitas. Hoje isso pode ser visto, em escala muito menor, com mulheres que jogam jogos multiplayer e usam nicks masculinos, pois com esses nomes são bons jogadores, mas se mostrarem que são mulheres vão ter que ouvir todo tipo de absurdo e assédio, além de ter o próprio jogo dificultado pelos outros jogadores.

No caso da Mulan, ela é uma mulher que não apenas luta bem, mas que tem talento, vocação para isso, e tem que esconder as habilidades para que os homens não se sintam humilhados por uma mulher ser melhor do que eles em algo que ela nunca deveria saber fazer. Do mesmo jeito que hoje existem situações em que mulheres se anulam para não mostrar que sabem mais do que um homem porque muitos adotam uma postura imatura e desagradável se isso acontece. Enfim, essa é a minha interpretação sobre isso.

Sinceramente, não acho que Mulan seja um filme ruim, mas obviamente também não é perfeito, se envolveu em polêmicas demais, criou expectativas demais, até por culpa da própria Disney, e se fosse lançado em um contexto normal teria uma recepção e uma bilheteria bem melhor, mas ao que tudo indica, o filme conseguiu se pagar, resta saber como vai ser o lucro.

Como bem discutido no nosso grupo do Telegram do SMUC, quem perde se Mulan não der uma boa bilheteria não é a Disney, somos nós, em não mostrar que queremos sim mais filmes de ação dirigidos por mulheres, protagonizados por mulheres e com representatividade asiática.

No fim, Mulan pelo menos acaba servindo como uma espécie de vitrine, já que querendo ou não é um filme ocidental sobre a China, para ocidentais verem. Serve bem para nos deixar encantados e interessados em saber mais sobre o país, mostrando sua riqueza cultural. Algo bom, visto que com tudo que acontece hoje, para muitos a China se tornou sinônimo de coronavírus, doença, medo e morte, mas o filme troca isso por beleza, tradição, riqueza e poder.

No mais, vamos nos preparar, porque não vai ser o último lançamento bagunçado da Disney, Viúva Negra (Black Widow, 2021) e Soul (2020) já estão enfrentando os mesmos problemas e incertezas.


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