Soul – Se você morresse hoje, estaria satisfeito?

Caro leitor, eu peço desculpas por começar nossa conversa com um título que pode parecer um tanto sombrio para muitos ou até piegas para outros, no entanto, foi com essa forte reflexão que a Disney Pixar, em pleno Natal de 2020, exatamente no dia 25, nos presenteou com Soul (2020). E, já tirando essa questão do caminho, obviamente que o toque especial da Pixar, que tanto nos emociona, está presente nesse filme também, assim como esteve em tantos outros sucessos que aclamados, como os recentes Divertida Mente (Inside Out, 2015) e Viva – A Vida É uma Festa (Coco, 2017). 

No entanto, desde o início, a trama vai além da perspectiva divertida, já que também traz um lado mais reflexivo e forte ao desfecho. E sabe o que vai ser realmente surpreendente? O fato de que essa reflexão tem sido nossa companhia desde que nascemos. Afinal, qual o nosso propósito real na vida? Realmente temos um? Alcançar um objetivo na vida é realmente o que nos fará feliz? Eu peço desculpas por tantas interrogações nessas últimas linhas, mas, sejam sinceros e me digam se pelo menos alguma delas acima já não flutuou por seus pensamentos mais secretos? 

Em Soul, acompanhamos a vida de Joe Gardner (voz de Jamie Foxx no original), um homem de meia idade, que se sente não realizado dando aulas como professor de música do ensino médio, pois desde criança sempre sonhou em ser um músico de jazz. E quando finalmente alcança a chance de participar de uma apresentação grandiosa como pianista, acaba sofrendo um acidente que faz com que sua alma seja separada de seu corpo e transportada para uma nova jornada rumo ao Grande Além. E, para voltar ao seu corpo, ele acaba se tornando um “Mentor” que deve servir de inspiração para uma nova alma, a número 22 (voz de Tina Fey no original), que ainda não está pronta para cruzar o espaço do “Grande Antes” e nascer na terra.

E é nesse desenrolar da aventura que nosso coração é confrontado por diversas verdades. Fantasia lúdica e comédia nos pegam suavemente pelas mãos e descortinam uma mensagem simples: viver já é a maior das inspirações que precisamos para estar completos. E, eu sei, parece muito simples dizer isso, parece muito que estou replicando algum trecho de livro de autoajuda, e talvez, seja exatamente assim que a personagem “22” sentia-se ao ouvir seus mentores anteriores, afinal tentar ser inspirada por personalidades grandiosas, que alcançaram feitos memoráveis que parecem tão distantes das nossas rotinas, que acabam soando apenas como conselhos vazios, sem sabor, realmente palavras sem alma. 

Acho importante deixar aqui a origem da palavra “alma”, que adquiriu seu sinônimo em sentido no termo ANIMA (derivando do termo em Latim animu que significa “o que anima”), aliás, bem a calhar para um filme de animação, e bem mais apropriado no que diz respeito a busca que ambos personagens anseiam durante toda sua jornada. 

As personagem de Joe e de 22 complementam-se, pois 22 tem um espaço por preencher para estar pronta para nascer e Joe, por sua vez, e apesar de já se sentir completo por seu propósito, acaba por se esvaziar de todos os outros momentos que preenchem a vida. E a vida pode ser resumida como o espaço de tempo que existe desde a hora que nascemos, até a hora que morrermos. E como experimentamos esse tempo? Nos limitamos a ser felizes apenas quando alcançamos algo, rezando para chegar a hora final do expediente para ser feliz, olhando para os doze meses no ano e esperando ser feliz apenas no mês das férias. Para onde vai nossa vida nessas outras horas? 

Sobre a estética do filme, suas formas, traços e escolhas de cores acabam por remeter a um universo relacionado à música, as representações de escalas e as sensações sonoras que elevam as vibrações e nos transportam para dimensões mais sutis que a realidade, em pouco mais que uma hora e quarenta e seis minutos de filme. 

Antes de fazer a indicação de que esse filme é maravilhoso, eu peço licença a você leitor, pois preciso agradecer muito pela realização desse projeto da Pixar\Disney. Eu havia perdido uma das minhas grandes paixões, que é escrever e me tornado uma pessoa cinza e sem alma por um tempo. Acho que muitos ficaram assim nesse último ano. O 2020, levou muitos de nossos sonhos e projetos, mas também me levou um irmão, e assim como a personagem 22, eu sentia que nada tinha um real propósito, não o bastante para ter de volta a “alma” para escrever. 

E então, assisti Soul e coincidentemente, no mesmo dia, vi em uma rede social uma postagem que trazia a memória do meu irmão, jogando o filho para o alto e o apanhando de volta e os dois riam, riam um para o outro. O vídeo dessa lembrança durava cerca de 13 segundos, mas aqueles risos valeram pela eternidade. Meu irmão não foi um grande médico, ou um grande advogado e sequer tinha essa ambição como objetivo de vida. Mas ele era ótimo, e ouso dizer que era o melhor entre nós em viver as coisas mais simples. Como por exemplo, gravar a alegria do filho em andar de ónibus pela primeira vez, ou sempre dizer de forma sincera, mesmo na correria das nossas rotinas: “eu te amo mana”.

Depois que ele se foi, lembrei que, quando jovens ele respondeu num caderno de perguntas e respostas (na nossa região o chamamos de “Disparate”, coisa de gente velha, nem sei se os jovens ainda brincam disso) Enfim, uma das perguntas finais era “Como você quer ser lembrado pelos seus amigos” e ele respondeu no seu número: Como um bobo. Lembro que todos nós rimos muito disso, mas hoje penso que foi a resposta mais sábia que alguém podia dar. Afinal, as nossas melhores lembranças são de coisas bobas. Coisas que nos fazem sentir a vida, como repetir falas de desenho animado depois de virar adulto, sentir medo de algo novo, mas mesmo assim ir lá e fazer, ou simplesmente fazer alguém rir. Meu irmão foi assim, viveu realmente.

E agora, enquanto escrevo tudo isso que acabaram de ler, senti uma coisa especial, uma alegria boba, quase como a de um cão que vai apanhar uma bola que foi atirada, não pelo fato de poder agarrar a bola, mas sim a felicidade de poder voltar a correr, de novo e de novo. 

Enfim, minha indicação sobre Soul é que essa animação me resgatou, e agora também voltei a crer que, mesmo que eu tenha a “bola” em minhas mãos, não quero deixar de viver e estar presente em cada passo da corrida. Também preciso dizer, muito obrigada a você leitor, por me completarem lendo essa resenha, afinal um texto “nasceu” e só está realmente pronto após ser lido por outra pessoa. 

Desejo que Soul, possa fazer esse mesmo processo a quem decidir assisti-lo, que lhe preencha de algo positivo e que lhe de ânimo para seguir a esse ano que mal começou.


VEJA TAMBÉM

Viva: A Vida é Uma Festa – Memória e afeto

Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica – A vida pode ser (talvez já seja) a grande aventura que você sempre sonhou