Colectiv – A crise da humanidade perdida

Em minha opinião, todo cinema é político. E é certo afirmar que, de todos os gêneros cinematográficos, o que mais potencialmente e objetivamente toca em temas políticos de forma efetiva é o documentário. A categoria que premia filmes deste gênero na festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o famigerado Oscar  – e não vou entrar no mérito desta premiação como uma instituição extremamente retrógrada e conservadora -, geralmente traz longas e curtas que chamam atenção para temas importantes e passíveis de discussão, sejam alguns de forma mais sensível, seja de forma mais incisiva e direta. Foi o caso de filmes como Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002), que alertava sobre os riscos de uma legislação frouxa sobre armamento da população em um país marcado por uma história de violência e morte por assassinatos, ou de Uma Verdade Inconveniente (An Inconvenient Truth, 2006), que denunciava a forma extremamente irresponsável com que a humanidade vinha tratando a natureza e acelerando seu próprio extermínio, só para citar alguns dentre vários. E preciso dizer o quanto é triste pensar que quase vinte anos depois estamos terrivelmente longe de resolver os problemas apontados por estes exemplos que trouxe aqui.

Este ano a categoria parece ter optado por uma maior sensibilidade, selecionando filmes que tratam, ainda sim, de temas políticos, mas de uma forma mais emotiva, como em Crip Camp: Revolução Pela Inclusão (Crip Camp, 2020) ou Time (2020). Mas é um filme romeno que tem se mostrado o favorito deste ano, inclusive sendo indicado também na categoria de Melhor Filme Internacional, e isso tem uma justificativa. Diferente dos outros documentários indicados, Colectiv (2019), trata de política de uma forma fundamentalmente mais direta e objetiva, puxando um gatilho não só do próprio país onde foi produzido, a Romênia, mas de todo o mundo contemporâneo, especialmente agora em 2020/2021. Dirigido por Alexander Nanau, Colectiv inicia sua abordagem ainda em 2018, quando a maior parte da população mundial jamais esperava o colapso na saúde mundial por conta de uma pandemia (e digo “a maior parte”, porque o espalhamento de um vírus mortal e que teríamos imensa dificuldade de combater já era esperada e alertada por boa parte da comunidade científica). O intuito inicialmente era abordar as consequência de uma tragédia que chocou o país, um incêndio em uma boate com pouquíssima estrutura de segurança que ocorreu em 2015 (algo próximo ao que aconteceu na Boate Kiss, no Rio Grande do Sul, em 2013), as manifestações populares que se seguiram, exigindo explicações do governo, e o drama de alguns dos sobreviventes, lutando para terem um tratamento digno no problemático sistema de saúde romeno.

Acompanhando um grupo de jornalistas, o diretor e sua equipe, acabam registrando a investigação e a descoberta de um sistema corrupto de desvio de verba hospitalar e manipulação de produtos de limpeza que causariam a morte de vários dos sobreviventes da tragédia, mesmo meses depois do incêndio. Logo, toda uma rede de corrupção é revelada, envolvendo autoridades políticas, diretorias de hospitais e empresas privadas, acarretando uma imensa crise política no país. Após a renúncia do Ministro da Justiça, incapaz de justificar tais denúncias, entra o seu substituto, já de início alvo de desconfiança e bombardeado com os inúmeros problemas. O documentário é ágil e corajoso, nos colocando próximos a uma situação tão revoltante. Mas, pensando bem, em pleno Brasil de 2021, não nos parece tão difícil imaginar e se revoltar com algo deste tipo.

Jamais relativizaria as situações dos dois países, mas é bastante difícil não pensar em tudo que estamos vivendo por aqui enquanto assistimos ao dramático desenrolar da crise romena anos atrás. No momento em que escrevo este texto nós estamos registrando o vigésimo dia seguido batendo recorde no número de mortes por COVID no Brasil. Enquanto vários países mundo afora estão colocando em prática planos de vacinação de sua população, comprando e negociando cada vez mais vacinas das que já foram testadas, o Brasil, em dois meses, vacinou pouco mais de 5% de sua população. Os hospitais e  UTI estão superlotados e o colapso do sistema de saúde em quase todos os estados já é um fato. Novas variantes do vírus (sim, já é no plural) surgem no país, mais severas e perigosas, colocando-nos como párea internacional, dificilmente aceitos em qualquer outra parte do mundo. Enquanto isso o Governo Federal, contrariando todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde e da grande maioria da comunidade científica, incentiva a continuidade das atividades econômicas, causando aglomerações, rebate a necessidade de fechamento (lockdown), desdenha do uso de máscaras, banaliza friamente a quantidade de mortos e doentes, e ainda incentiva a adoção de um “tratamento precoce” que não tem absolutamente nenhuma comprovação científica a não ser a daquele tio do zap que compartilha qualquer merda que recebe.

Dito isto, qual não foi minha angústia ao não me sentir assim tão mal com o que Colectiv me mostrou. Não porque não tenha me chocado com tamanha tragédia e suas consequências naquele país, longe disso. Mas apenas porque no momento em que vivo, no país em que vivo, com  a dor que sinto e o medo da perda de amigos e familiares, é impossível não lamentar muito mais a minha própria situação ao assistir a crise de saúde romena. É difícil sentir empatia quando estamos nós mesmos em uma situação tão grave, desgastante, quando estamos tão necessitados de esperança. É difícil terminar de ver o filme sem pensar na nossa própria crise atual, causada não apenas pela negligência do Governo Federal, mas impulsionada por este, e mais especificamente pelo basculho em seu comando, de nome Jair Messias Bolsonaro, que é sim, e digo com toda clareza, um GENOCIDA.


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