Segredos de Um Escândalo – A vida como ela é

O diretor e roteirista Todd Haynes é um corpo um tanto estranho no cinema estadunidense. Ainda que não seja o primeiro a se propor a esmiuçar as hipocrisias e os problemas presentes nos subúrbios do seu país – como exemplo, Todd Solondz (Felicidade, Bem-vindo à Casa de Bonecas), contemporâneo a ele, fez carreira lidando com questões desse meio – ele o faz sob um olhar carregado de uma estranheza que algumas vezes não está exatamente explícita, como é o caso de Longe do Paraíso (Far from Heaven, 2002) e Carol (2015), suas obras mais aclamadas, mas que se revela na sua visão muito particular do melodrama e na defesa que faz dos marginalizados. Vejo nele muito do que Almodóvar também faz, mas se o diretor espanhol superdimensiona as relações familiares/interpessoais, algumas vezes esbarrando na caricatura, Haynes é mais comedido e acrescenta uma crítica social incisiva (não que Almodóvar não o faça, mas esse não é, na maioria das vezes, seu foco), mostrando como a normatividade que a sociedade preza pode sufocar aqueles que desviem dela, seja a dona de casa apaixonado pelo jardineiro negro nos anos 1950 (Longe do Paraíso), sejam cantores de glam rock dos anos 1970 (Velvet Goldmine). Apesar disso, Todd Haynes não transforma seus personagens em heróis imaculados ou vítimas inocentes; pelo contrário, suas criações são complexas e não se ressentem de ser como são, independente das dificuldades que encontrem nos embates contra a opressão social.

Seu novo trabalho, Segredos de um Escândalo (May December, 2023), segue de perto tudo que o diretor já trabalhou antes, mas se mostra um passo adiante em sua carreira ao acrescentar um cinismo e um deboche que, apesar do tema pesadíssimo, quase transforma o filme numa dramédia. Baseando levemente em um caso real, Haynes traz a história de Elizabeth Berry (Natalie Portman), uma atriz de segunda categoria que, em busca de um papel que lhe dê prestígio, pretende interpretar uma versão ficcionalizada de Gracie (Julianne Moore), mulher que, mais de duas décadas antes, havia sido presa por manter relações sexuais com um garoto de 13 anos. Como forma de pesquisa para o papel, Elizabeth passa a conviver alguns dias com Gracie e Joe (Charles Melton), o garoto de quem Gracie abusou e que acabou por se tornar seu marido após ela sair da prisão. 

Como forma de enfatizar como uma história dessas pode ser, ao mesmo tempo, tão real quanto absurda, Haynes transforma seu filme numa mistura de melodrama novelesco (uma redundância, eu sei) – com traições, personagens dissimulados, mentiras e embates familiares – com suspense barato do SuperCine dos anos 1990, inclusive apelando para uma maravilhosa trilha de suspense (é ridículo e incrível um personagem abrir a geladeira e o filme tratar isso como se fosse uma grande cena de mistério) e para uma fotografia ao mesmo tempo chapada e enevoada, que remete aos filmes baratos feitos direto para vídeo ou TV de mais de duas décadas atrás.

Mas nada disso funcionaria tão bem sem aquilo que, para mim, é o ponto alto do filme: as atuações do trio Natalie Portman, Julianne Moore e Charles Melton. Começando por Portman, que entrega uma das melhores atuações de sua carreira com uma personagem dissimulada, cuja ambição se traveste de profissionalismo e a faz ultrapassar limites éticos em nome da “arte”. Igualmente sonsa, mas de uma forma mais perigosa, é a Gracie de Julianne Moore, uma mulher insegura, manipulativa e que convenceu a si mesma que é uma vítima em todas as situações. Os embates entre elas nunca saem do campo da civilidade, mas fervem sob a superfície e resultam em cenas absurdamente elétricas, auxiliadas por um texto extremamente bem escrito. Mas, se delas já era esperado no mínimo algo ótimo, Charles Melton é a verdadeira surpresa do filme, com uma atuação delicada, que flutua entre a tristeza de ter sido forçado a se tornar adulto muito cedo, com os anseios e as inseguranças que deveriam ter sido vividos em uma juventude que lhe foi negada. Por isso, mesmo em meio ao tom quase satírico que o filme adota, é importante perceber que Haynes não esquece como a vida de Joe foi prejudicada e como, mesmo ele sendo o mais afetado por tudo – até mesmo pelas ações de Elizabeth –, ele é sempre quem fica em segundo plano em relação aos desejos e intenções das duas.

Por tudo que foi dito acima é que, mesmo em uma carreira repleta de bons filmes, Segredos de um Escândalo assume, para mim, um dos lugares de destaque na filmografia não só do diretor, mas de seu elenco. É uma pena, no entanto, que a proposta do filme não tenha sido tão bem entendida (ou aceita). Pois só isso – e uma campanha ruim – para justificar a quase completa ausência dele no Oscar 2024. A única categoria na qual concorre, Melhor Roteiro Original, é justíssima, mas a falta de indicações para o elenco e para o filme em si é imperdoável. É só mais um atestado da miopia das premiações, que dificilmente dão destaque a obras que fujam do convencional. Felizmente, isso não diminui o brilho de um dos melhores filmes do ano e só faz desejar que Todd Haynes continue mantendo sua estranheza.


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