Anatomia de Uma Queda – Uma autópsia invasiva de uma família disfuncional

Antes de tudo gostaria de esclarecer que esse texto estará repleto de spoilers, afinal trata-se de uma análise de uma obra que ganha riqueza narrativa à medida em que avança. Seria redutivo com o trabalho de Justine Triet dissertar sobre ele sem mergulhar em suas nuances.

Um plano aberto em uma escada. Uma bola vermelha cai, quicando de degrau em degrau como uma maneira muito inteligente de trabalhar algo conhecido como “foreshadow”. Um cachorro apanha essa bola e em um corte abrupto somos apresentades ao contexto geral da cena. Uma escritora, conhecida por retratar suas vivências através da ficção, sendo entrevistada por uma estudante de literatura para sua tese. O caos se espalha pela casa a ponto de tornar insustentável a entrevista, que é adiada. Em paralelo, Daniel, o filho de Sandra e Samuel, sai para passear com o cachorro e ao retornar encontra seu pai caído na frente da casa com um ferimento na cabeça, sangue à sua volta e sem vida. Com esse cenário Justine Triet inicia um drama investigativo sufocante para descobrimos a verdade sobre o que aconteceu com Samuel. 

Saio da sala de cinema onde assisti a Anatomia de Uma Queda (Anatomie d’une Chute, 2023) com uma sensação de inquietação. Um emaranhado de questionamentos e sentimentos não apenas sobre o filme, mas sobre mim mesma. Questionamentos que pediam por uma longa caminhada então resolvo encarar os 3km até minha casa em uma noite fria de 18° tentando desemaranhar os fios e tecer uma malha de pensamentos claros. 

Por que nós, enquanto sociedade e enquanto indivíduos, temos uma obsessão em apontar um grande culpado, em criar uma figura vilanesca, munidos de uma falsa moralidade em situações que nem sequer nos diz respeito? A personagem Sandra Voyter (Sandra Huller) não apenas tem que lidar com o luto do marido que cometeu suicídio e com as questões familiares que a morte de Samuel (Samuel Theis) trouxe, como é arrastada para o centro de um processo judicial violador, moralmente ambíguo e misógino. Duas gotas de sangue em uma parede são mesmo o suficiente para executar uma bárbara caça às bruxas e acusar uma mulher de assassinato? E isso é concreto o suficiente para transformar tudo em um circo midiático absurdo? 

Toda a vida e intimidade daquela família é dissecada, expondo suas vísceras para um país inteiro. O hostil promotor, interpretado com genialidade por Antoine Reinartz, usa dos artifícios mais baixos para culpabilizar Sandra Voyter pela morte do marido, como suas obras, o acidente que seu filho Daniel (Milo Machado-Graner) sofreu e até mesmo a sexualidade dela. Muito me incomoda que todos esses absurdos e violências morais sejam cometidas em pleno tribunal, o quão conivente todo aquele sistema judiciário é com a situação. 

Claro, toda essa circunstância sufocante não seria sentida com tanta veracidade pelo público se não fosse executada com tanta maestria como foi neste longa. A direção e roteiro de Justine Triet são muito assertivos. Ainda que brinque com a dualidade de fazer o público acreditar que Sandra é culpada ou inocente, fica muito clara sua percepção da história e as questões que ela se propõe a denunciar ali. É possível sentir a indignação e raiva de uma forma crua e real. Minha torcida está forte para que Justine vença nas categorias de melhor direção e roteiro original, não apenas por ser a única mulher a concorrer na categoria de Melhor Direção nesta edição do Oscar, mas pela excelência de seu trabalho. A montagem de Laurent Sénéchal também marca presença na categoria de Melhor Edição como forte candidata. O trabalho de Laurent é tão potente que passa a ser um recurso narrativo tão importante quanto o roteiro. Escolhendo exatamente o que mostrar e principalmente o que não mostrar, enfatizando que nada é contado de maneira parcial ali. A montagem mescla filmagens cinematográficas com filmagens “amadoras”, traz referências televisivas e constrói uma atmosfera muito real, quase documental.

A franqueza que o filme traz funciona perfeitamente bem, pois o elenco parece estar alinhado com a proposta da narrativa a qual estão dando vida. Não é exagero dizer que até o cachorro atua bem! Não espere ver nas atuações de Anatomia de Uma Queda aquele típico exagero do cinema hollywoodiano. O ator e diretor Samuel Theis, de Party Girl (2014) e Softie (2021), encara o desafio de construir um personagem profundo com pouquíssimo tempo de tela e consegue! Mesmo que esteja presente somente em flashbacks ele contribui para que tenhamos uma imagem mais real, mais tátil de seu personagem. Em poucas cenas é possível sentir o contraste entre as fragilidades e as atitudes tóxicas de Samuel. 

Sandra Huller, de Sisi & Eu (Sisi & Ich, 2023) e Zona de Interesse  (The Zone of Interest, 2023), é a grande condutora da obra. A atriz alemã conduz sua personagem de forma tão precisa e madura que define completamente o tom da cena quando está à frente das câmeras. Sem precisar apelar para exageros, muitas vezes apenas com sua linguagem corporal, ela consegue transparecer toda a dor, exaustão, revolta e força de Sandra Voyter. Sem dúvidas uma das competidoras mais fortes na disputa pela estatueta de Melhor Atriz nesta temporada do Oscar.

Milo Machado-Graner dá uma aula de atuação! O ator de apenas 15 anos, tem seu primeiro papel de destaque como Daniel, filho de Sandra e Samuel e sem dúvidas é um nome que deveria estar entre os indicados a melhor ator coadjuvante. Daniel não apenas está lidando com o luto de seu pai, como precisa lidar com uma exposição amoral de suas figuras parentais. Em meio a tudo isso, ainda é afastado de sua mãe pelo sistema judicial, ficando sob os cuidados de uma pessoa até então estranha para ele. Ao decorrer do filme, ele se torna uma peça chave para desvendar o que aconteceu com Samuel.  Milo entrega com sutileza e emoção cada camada do complexo Daniel. 

Anatomia de Uma Queda conquistou grandes prêmios como Palma de Ouro, César de melhor filme, direção, roteiro original, montagem, atriz e ator coadjuvante e Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e concorre ao Oscar de Melhor Filme. Em termos de repercussão midiática não é o mais forte da categoria, mas a obra ganha força por sua qualidade narrativa ímpar e pela excelente recepção da crítica. Será que Justine Triet leva para casa a estatueta mais importante da noite?


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