Sabe a fatiga de super heróis? Ela realmente me pegou da pior forma possível. Nem sequer as obras favoritas estavam me passando a mesma sensação. Lembremos, sou alguém fã de quadrinhos desde a franquia dos X-Men e Quarteto Fantástico da FOX e a falta de roteiro em prol de um universo compartilhado simplesmente cansou. Esse ano as séries da Marvel começaram com heróis aos quais eu não conhecia muito, e isso na verdade facilitou assistir as obras – não tenho muito a criticar por mudanças desnecessárias.
É um problema? Não sei confirmar ao certo, mas é uma tática específica minha de começar pelo audiovisual antes dos quadrinhos, sempre me garante um grande amor aos personagens. Foi assim com Fugitivos (Runaways, 2017 – 2019), Manto e Adaga (Cloak & Dagger, 2018 – 2019), Shang Chi e a Lenda dos Dez Anéis (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings, 2021) e agora posso afirmar que foi assim com a nossa super heroína paquistanesa, Ms. Marvel (2022).
Kamala Kan é uma personagem extremamente recente nos quadrinhos, tendo sua primeira aparição em Capitã Marvel #14 em 2013, menos de dez anos atrás. Foi a primeira personagem muçulmana a ganhar um quadrinho próprio, um quadrinho cujo primeiro volume ganhou o prêmio Hugo por melhor história gráfica. Mesmo sendo de alguma forma uma heroína legado, a história da adolescente causou um grande impacto e a mesma já foi adaptada para animações, jogos de videogame e agora uma série própria.
“Não são as meninas marrons de Jersey que salvam o mundo.” Uma frase importante da heroína principal no primeiro episódio da série intitulado Geração Por Quê’ sintetizando uma batalha para existir em meio a um Estados Unidos dominado por branquitude e querendo ou não, racismo. Por muitas vezes a série fala sobre como muçulmanos sempre estão com um alvo nas costas, constantemente sob o olhar atento. Mas honestamente quando Kamala fala sobre as meninas marrons ela não fala sobre racismo, a série fala sobre a cultura e a história do povo muçulmano. A forma como a história do seu povo e sua cultura impacta na transformação de Kamala Kan para Ms. Marvel é uma coisa totalmente orgânica e, mais do que tudo, uma origem muito bonita de se ver.
Iman Vellani trás um carisma inexplicável à jovem Kamala, como uma adolescente paquistanesa fã de super heróis se descobrindo em meio a um mundo fantástico e descobrindo um pouco as maravilhas em si mesma. Não apenas graças a ela, mas é importante falar sobre como sem sua interpretação tão carismática a série não teria sido a obra seriada mais bem avaliada da história da Marvel no Rotten Tomatoes. Em seus primeiros episódios a série tem um ar mais adolescente, remetendo um pouco até a séries do Disney Channel, com uma pegada fantástica, poderes e muita diversão em meio ao mundo adolescente. Matt Lintz interpreta Bruno Carrelli, melhor amigo e o nerd do computador de Kamala, que a ajuda a descobrir mais sobre seus poderes. Claro, há uma pequena quedinha do personagem por sua melhor amiga, nada muito original de se assistir, mas também não atrapalha o enredo.
No segundo episódio, com o título O Crush, podemos mergulhar menos no ambiente familiar ou escolar de Kamala (uma pequena menção aqui a duas personagens que formam um casal lésbico escutando música na frente do armário de Kamala nos dois primeiros episódios). O episódio nos leva ao lugar de religiosidade e espiritualidade da personagem, vemos também mais de sua amizade com Nakia (Yasmeen Fletcher) e seu desejo de fazer da Mesquita um lugar melhor, de ter sua voz ouvida. Mas para justificar também o título do episódio há a introdução do personagem Kamran (Rish Shah), o interesse amoroso de Kamala e também a conexão dela com a origem de seus poderes mais aprofundada nos próximos episódios.
Meera Menon é a diretora responsável pelos episódios dois e três do seriado, os mais focados na cultura da personagem paquistanesa e também os primeiros paços de Kamala como uma heroína. Sua estreia como diretora em obras baseadas em quadrinhos não foi em Kamala Kan, visto que a diretora trabalhou em episódios do seriado da Netflix O Justiceiro (The Punisher, 2017 – 2019) e na série Titãs (Titans, 20118 -). São obras bem diferentes de Ms. Marvel, especialmente considerando o peso da humanidade e da cultura presentes nos episódios dirigidos por Menon. Mesmo no começo da história há a presença deste quebra-cabeça não relacionado apenas ao bracelete que desencadeou os poderes da protagonista, mas às suas visões e a presença desta misteriosa figura – Najma, mãe de Kamran e interpretada por Nimra Bucha.
Em Destinada Kamala aprende sobre como ela faz parte de um grupo vindo de outra dimensão chamado Clandestinos e o bracelete que despertou seus poderes é a única forma deste grupo voltar para a dimensão Noor. Em termos islâmicos, “noor” ou “nūr” significa “luz fria da noite” ou “luz sem calor”, o que dialoga completamente com a representação visual dos poderes de Kamala. O título referencia muito como nossa protagonista estava destinada a fazer algo importante com seu dom, cabe apenas a ela decidir o quê seria isso. Um episódio que serve para encerrar o arco inicial da série, e nos leva mais a fundo nas relações familiares de Kamala durante o casamento de seu irmão Aamir (Saagar Shaikh). Um dos episódios mais divertidos de se assistir, devido às cores, direção de arte, às cenas tão humanas entre os personagens e um bom mergulho no núcleo familiar de Kamala em Nova Jersey.
Quando se fala em Disney e família, as últimas obras do estúdio têm sido bem recheadas de traumas geracionais, como Encanto (2021) e Red: Crescer é Uma Fera (Turning Red, 2022). Isso também está presente aqui com a figura materna de Kamala sendo extremamente severa com sua filha, a repreendendo por não ser a filha idealizada por ela. Parte disso existe em meio a um conceito cultural, apresentado no primeiro episódio, sobre as expectativa dos papéis femininos, mas a medida que passamos mais tempo com Muneeba Khan, personagem interpretada por Zenobia Shroff, conseguimos compreender o fato de sua rigidez com sua filha ser mais devido a uma relação quebrada com sua própria mãe Sana – interpretada por Samina Ahmad. Uma relação complexa muito mencionada ao longo dos diálogos dos primeiros episódios, mas finalmente aprofundada com a chegada do quarto episódio, que nos leva em uma verdadeira viagem.
De Volta às Origens é o título do quarto episódio, dirigido por Sharmeen Obaid-Chinoy, cujos trabalhos em filmes são conhecidos por abordarem a desigualdade em relação às mulheres. Podemos literalmente viajar ao Paquistão e junto de Kamala mergulhar mais na cultura paquistanesa, onde temos até alguns pequenos diálogos em relação à comida dali ter um sabor bem mais forte do que os mesmos pratos paquistaneses nos EUA. É até dito como americanos conseguiram deixar até a comida mais branca. Se torna interessante e deixa honestamente um gosto de quero mais, ver a imersão naquele país, naquela cultura e em sua história. É aqui que entra um dos maiores pontos negativos da série, como ela não parece dar o tempo necessário em cada um de seus arcos e enredos. O seriado é um prato cheio de enredos, de personagens interessantes, sub enredos a serem explorados, mas simplesmente não dá pra fazer tudo isso em seis episódios com menos de uma hora.
Quando se pensa em Ms. Marvel como a sexta série live action produzida pela Marvel Studios é notável como o número de episódios nem sempre se equipara a dimensão de enredos propostos ao longo da obra. Afinal, meu maior problema com Falcão e o Soldado Invernal (The Falcon and the Winter Soldier, 2021) é como abriram várias portas de enredos e não desenvolveram ou sequer encerraram quase nenhum. Esse não é o problema com Ms. Marvel, visto que a série consegue aproveitar seis episódios e contar a sua história. Mas a série se beneficiaria muito por desenvolver mais do que o enredo principal sobre Kamala, seus poderes e sua família. É uma série completamente recheada de personagens interessantes e capaz de deixar um gosto muito evidente de quero mais. Acho que o que mais evidencia isso é o próprio quinto episódio da série O Tempo Dirá, onde a série cria essas paralelas narrativas em tempos diferentes, e seria muito mais benéfico para a trama se houvesse mais tempo para explorar estes arcos.
Finalizando não apenas os episódios da série mas o texto, no sexto e último episódio da temporada podemos ver a culminância dos arcos de todos os outros episódios anteriores e não de uma forma previsível. Ao contrário, é algo bem orgânico, mesmo as vezes precisando preencher buracos deixados pelo pouco tempo de narrativa. O episódio final trás duas cenas particularmente emocionantes para mim: uma é a de Kamala tendo seu uniforme entregue a ela por sua mãe, e a outra é do seu pai explicando o significado de seu nome, “maravilha” (marvel em inglês), e dizendo que ela sempre foi a Ms. Marvel deles. Iman Vellani se solidifica como uma incrível adição ao Universo Marvel, além de tudo uma personagem eternizada para sempre na história do mesmo. Aguardemos ansiosamente para a próxima aparição de Kamala Kan no filme de Nia DaCosta, As Marvels (The Marvels), no ano que vem.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.