Nos últimos anos está se tornando comum que dentre os indicados na categoria de Melhor Longa-Metragem de Animação no Oscar surja sempre um que sai, mesmo que de leve, do padrão estabelecido pelos grandes estúdios da área, muitas vezes se revelando como a obra no mínimo mais interessante dentre as cinco. Só para citar os últimos quatro anos tivemos: em 2023 Marcel, a Concha de Sapatos (Marcel the Shell with Shoes On, 2021); em 2022 Flee: Nenhum Lugar Para Chamar de Lar (Flugt, 2021); em 2021 WolfWalkers (2020); e em 2020 Perdi Meu Corpo (J’ai Perdu Mon Corps, 2019). Em nenhuma dessas ocasiões algum dos mencionados levou a almejada estatueta, ficando esta, como sempre, com o queridinho daquele ano, o que quase sempre quer dizer Disney/Pixar. Porém, só o fato de estar entre os indicados já é bom o bastante para popularizar alguns destes filmes, quando nem mesmo aparecer como um dos mais premiados nos principais eventos específicos para animação, como o Annie Awards ou o Festival de Annecy, consegue dar a eles tanto destaque. Não tem jeito, mesmo com todos os defeitos (e eles são inúmeros, especialmente para os fãs de filmes animados), Oscar é Oscar.
Neste ano o filme que se encaixa nessa categoria de “diferentão” é o longa Meu Amigo Robô (Robot Dreams, 2023), desbancando nesta disputada lista nomes de peso como o filme comemorativo de 100 anos dos estúdios Disney Wish: O Poder dos Desejos (Wish, 2023), o megassucesso de bilheteria Super Mario Bros. – O Filme (The Super Mario Bros. Movie, 2023), o queridinho Suzume (Suzume no Tojimari, 2022), e meu preferido entre as animações do ano passado, As Tartarugas Ninja: Caos Mutante (Teenage Mutant Ninja Turtles: Mutant Mayhem, 2023), entre outros. Então foi impossível não despertar a curiosidade de todos, como uma animação infantil, desenhada num 2D clássico, sem nenhum diálogo falado, conseguiu furar essa fila super disputada e chegar entre os cinco finalistas na categoria esse ano?
Bom, não sou eu quem vai responder essa questão, mas posso afirmar com alguma certeza que Meu Amigo Robô não chegou a este lugar à toa. Dirigido pelo espanhol Pablo Berger – que chamou atenção alguns anos atrás com sua estranha versão do conto dos Irmãos Grimm, Branca de Neve (Blancanieves, 2012) -, e com roteiro baseado na graphic novel da americana Sara Varon, lançada em 2007, o filme é uma fábula moderna simples e direta, infantil mesmo, sem firulas alegóricas exageradas ou semiótica em alto nível, mas um filme feito para crianças, com uma lição ao final, um aprendizado em que o expectador pode fazer uma reflexão ao sair da sessão ou simplesmente se identificar por ter vivido algo parecido com a história que acabou de ver.
Tá, mesmo que tenha dito que não tenha grandes alegorias ou metáforas, meio que me contradisse, já que também mencionei que o filme é uma fábula, e como toda fábula é na alegoria de um mundo não exatamente humano que ela se apoia. Aqui conhecemos Cão, um solitário habitante de uma área movimentada de uma Nova York de décadas atrás (alguns detalhes nos fazem perceber essa temporalidade). Essa solidão do nosso protagonista o incomoda, chegando ao ponto de após ver um comercial fazer um pedido de um “robô companheiro”, e após esperar ansioso sua chegada e montá-lo peça por peça seguindo o complicado manual, o robô se mostra bastante competente na função a que deve sua existência: se torna uma ótima companhia para Cão. Durante alguns dias essa relação intensa vai se tornando cada vez mais concreta, Cão ensina e mostra para Robô as belezas do mundo, enquanto Robô faz Cão esquecer que um dia fora tão infeliz e solitário.
Se você já assistiu ao belíssimo filme Ela (Her, 2013), de Spike Jonze, é quase impossível não fazer uma rápida associação (mas é interessante notar que a graphic novel que inspirou a animação foi lançada em 2007), e é mais ou menos por aí que a coisa vai. Cão claramente se joga nessa relação (em nenhum momento fica claro se há algo de romântica nela, mas cada um com seu cada qual), vive o que devem ser possivelmente os melhores dias de sua vida até ali. Até que – claro – algo acontece, uma fatalidade que os separa de forma abrupta, mesmo que ainda continuem gostando um do outro, algo que poderia ter sido evitado até que fosse tarde demais, o universo, o destino, ou o que quer que seja fez com que no prazo de um ano inteiro ambos não pudessem mais continuar vivendo as maravilhas dos últimos dias. Robô fica preso em uma situação que o paralisa, enquanto Cão não sabe o que fazer mais para ajudá-lo e juntar novamente os dois, restando apenas esperar. Mas um ano é muito tempo, muita coisa acontece na vida de ambos, mesmo que enlutados pela perda um do outro a vida continua e segue rumos inesperados, novas personagens surgem, eventos passam e os transforma, sonhos são sonhados. E como diz minha vó: “a vida dá muita volta com a gente”.
E a beleza do filme está na simplicidade, na naturalidade com que uma relação que se desfaz é tratada. Não há uma grande reviravolta, mesmo que hajam, sim, coincidências em algum ponto. Não existe sutileza nenhuma na criação de uma expectativa que vai aos poucos se desfazendo em fragmentos, é perceptível. E é isso, é sobre a necessidade de se desapegar, sobre a importância de entender que desistir nem sempre é algo ruim, é saber que muitas vezes fazemos o que podemos, até que em algum momento não podemos mais, e tá tudo bem. O fato de Meu Amigo Robô ser um filme que funciona para todas as idades acima dos 9 ou 10 anos é que o tabu de que devemos nos agarrar a tudo, tomar posse de pessoas como tomamos posse de uma moeda que achamos no chão, é muito forte na nossa sociedade, e é isso que nos faz sofrer tanto uma perda, a demorar tanto a aceitar que a vida acontece, independente dos nossos sonhos e desejos.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.