Vidas Passadas – A saudade do que poderia ter sido, mas não foi

Todos nós temos momentos em que olhamos para o passado e pensamos: “E se?”. Quanto mais velhos ficamos, mais momentos assim vamos acumulando, num exercício de revisitação de situações – e escolhas feitas, conscientemente ou não – que nos fazem imaginar como nossa vida seria caso aquilo que aconteceu tivesse sido diferente. Isso não é um atestado de saudosismo ou, principalmente, de arrependimentos, mas algo natural, que nos faz refletir sobre nós mesmos. No entanto, muitas vezes isso pode gerar uma saudade, um sentimento da ausência de algo que nem chegou a ser, a existir, mas que a simples perda dessa possibilidade nos provoca um vazio.

Em sua estreia como diretora e roteirista de longas, a coreano-canadense Celine Song – que fez parte do time de roteiristas da primeira temporada da série A Roda do Tempo (2021 – atual), da Amazon Prime Video –  entrelaça de forma brilhante alguns temas que, por si só, dariam um filme cada: a relação de um indivíduo com suas raízes, as mudanças que ocorrem em nós e o quanto elas distanciam o nosso eu de antes para o nosso eu atual e a forma como um sentimento pode sobreviver apenas pela força do desejo de que um dia ele seja correspondido. São questões que estão escancaradas, mas nunca de forma óbvia ou entediante: o roteiro, da própria realizadora, sabe exatamente o que deve ser verbalizado e o que deve ser expressado pelo silêncio. 

Em Vidas Passadas (Past Lives, 2023), Nora (Greta Lee, na fase adulta) é uma escritora sul-coreana que, aos 12 anos, migra com a família para os EUA. Parte da vida que deixa para trás é sua amizade com Hae Sung (Teo Yoo, na versão adulta), garoto de quem ela diz gostar e que é visivelmente apaixonado por ela. Uma década depois, já adultos, eles retomam contato pela internet e passam a reviver a amizade, dessa vez com toques de um romance à distância. No entanto, a dificuldade de se verem pessoalmente faz com que Nora decida por um afastamento e somente doze anos depois eles voltam a se falar, com a eminente visita de Hae Sung a Nova York, onde Nora reside com seu marido, Arthur (John Magaro). O encontro cara a cara entre os dois traz, para ambos, uma série de questões que mudam de forma sutil, mas definitiva, as vidas deles.

Logo de início, é perceptível que esse é um trabalho que traz uma complexidade muito maior do que aparenta. Tanto na forma como é filmado como em seus diálogos, o que parece ser simples e direto esconde uma série de camadas que, apesar do caráter extremamente pessoal da história que está sendo contada (baseada em experiências da própria diretora), fazem com que cada espectador consiga mergulhar na narrativa e se identificar em algum nível. Vidas Passadas se torna, assim, uma daquelas pequenas joias (em escopo, não em qualidade) que surgem de tempos em tempos no cinema e que trazem histórias que, através do particular, atingem sentimentos e vivências universais.

Inteligente, luminosa, ambiciosa, Nora é alguém que domina momentos e espaços, ainda que num olhar mais atento seja possível perceber que há uma forte insegurança e o medo de não ser aceita naquela terra ainda tão estrangeira, ou mesmo de não ser tão boa no que faz quanto tenta transparecer. Hae Sung, por outro lado, é tímido, passivo e aparentemente resignado com a vida que leva, mas que traz abaixo da superfície um sentimento (amor?) tão forte por Nora que isso termina por guiar sua vida, ainda que ele não se dê conta disso até ser confrontado com a verdade: certas histórias não são mesmo para acontecer e isso não precisa ser um trauma ou um sofrimento.

Além do roteiro impecavelmente construído – ao mesmo tempo orgânico e milimetricamente calculado – o elenco brilha a cada cena; e nisso, não incluo somente Greta Lee e Teo Yoo, mas mesmo John Magaro, que protagoniza um dos momentos mais belos do cinema no ano passado, na conversa que seu personagem tem na cama com a esposa. São performances discretas e sutis, e por isso mesmo absurdamente difíceis em sua realização.

Com essa impactante estreia na direção, Celine Song conseguiu, além da aclamação da crítica e diversos prêmios, duas indicações ao Oscar 2024, Melhor Filme e Roteiro Original. Ainda pouco para a qualidade de seu filme, mas um passo importante para que uma voz tão interessante tenha muito mais chances de ser ouvida outras vezes.


VEJA TAMBÉM

Pobres Criaturas – Até onde um desejo pode levar alguém

Maestro – A linha tênue entre uma grande obra e a banalização do drama