Para mim, comédia e terror são os dois gêneros mais particulares que existem. Explico: rir ou ter medo são emoções que variam imensamente de pessoa para pessoa. Ainda que existam situações que podem atingir a maioria relativamente da mesma forma, muitas vezes o que leva uma pessoa a rir ou temer pode se mostrar completamente ineficiente para outra. Então, se já é difícil provocar essas emoções nos espectadores em cada gênero separado, o que dizer quando eles se unem? É um desafio, e o equilíbrio necessário para que a obra funcione – seja filme, série, livro, etc. – certamente não é fácil de se atingir. Ainda assim, é um caminho atrativo para muitos realizadores, e esse ano mesmo tivemos um ótimo exemplo de como isso pode funcionar, com O Urso do Pó Branco (Cocaine Bear, 2023). E agora temos outro exemplar dessa vertente com Renfield – Dando o sangue pelo chefe (Renfield, 2023) que, além de apostar fortemente na dobradinha humor & horror, o faz em cima de um dos personagens mais famosos da cultura mundial: Drácula, aqui interpretado com evidente prazer por Nicolas Cage, ainda que ele não seja o protagonista da obra, função assumida pelo Renfield de Nicholas Hoult.
Por ser uma produção da mesma Universal que produziu o clássico Drácula (Dracula, 1931), o filme se assume como uma espécie de continuação deste (chegando ao ponto de inserir os intérpretes atuais dos personagens em cenas do filme original), mas desta vez focando a narrativa em Renfield, um pobre coitado que se tornou escravo de Drácula no livro e no filme originais, realizando as tarefas que seu mestre não pode fazer durante o dia. Para isso, aqui, ele ganha força e agilidade ao ingerir insetos, em uma sacada maravilhosa dos roteiristas de transformar uma caraterística do personagem que era usada apenas para mostrar sua loucura e provocar nojo no público em algo que contribui efetivamente para a ação.
Na trama, Renfield realiza suas tarefas há mais de um século e encontra-se cansado de encontrar vítimas e limpar a sujeira do mestre, mas não sabe o que fazer para sair dessa situação (nem mesmo se deseja, de fato, sair dela). Até que, ao seguir uma possível vítima – que ele conheceu em um grupo de ajuda para pessoas em relacionamentos abusivos, local de ótimas piadas, muitas das quais, infelizmente, já estão no trailer – até um restaurante, ele acaba salvando todos os presentes do ataque de traficantes, que pretendiam matar a policial Rebecca (Awkwafina), que se mostrou incorruptível e inimiga desse grupo de bandidos, destoando de seus colegas corruptos. É somente ao conhecer essa mulher irritadiça, mas extremamente íntegra, que Renfield começa a sentir que pode se livrar de fato da codependência que tem em relação a Drácula e viver a própria vida. A partir disso, a narrativa entrelaça a busca de Renfield pela independência e a luta de Rebecca para levar à prisão a família criminosa Lobo, liderados por Bellafrancesca (Shohreh Aghdashloo) e responsáveis por matar seu pai e tentar matá-la.
Em meio a isso, seguem-se muitas piadas com relacionamentos abusivos, bastante gore e o maravilhoso, afetadíssimo e nojento Drácula de Nicolas Cage. O seu conhecido talento para interpretar personagens surtados é muito bem utilizado aqui e, ainda que o personagem não seja o protagonista, ele domina todas as cenas em que aparece e isso é suficiente para compensar os momentos menos inspirados do filme. E mesmo que não brilhem tanto quanto Cage, o restante do elenco segura bem seus papéis, principalmente Nicholas Hoult, que consegue passar com eficiência a melancolia e a doçura de seu personagem, e convence não somente nas piadas, mas também nas cenas de ação. Estas, por sinal, são filmadas com competência, sendo claramente inspiradas na violência de Deadpool, exagerada e surreal, e nas lutas de John Wick, frenéticas e brutais. Além disso, há um colorido e uma profusão de neon que dá um visual quase cartunesco ao filme, como numa versão sombria e sanguinolenta de algum desenho da Hanna-Barbera.
É uma pena, no entanto, que a ausência de uma direção e um roteiro mais ousados impeçam que o filme atinja todo seu potencial, já que, além de martelar sua mensagem com a sutileza de um coach de autoajuda, muitas piadas ficam na superfície e se valem demais de um texto óbvio. Além disso, há um claro componente sexual que é inerente à figura de Drácula, que é ignorado aqui e que poderia tornar a relação dele com Renfield ainda mais complexa se fosse aprofundado. O filme parece temer tanto dar algum tipo de teor sexual para qualquer personagem (arrancar braços e cabeças, jorrar litros de sangue, ok, mas Deus nos livre de insinuar sexo!) que até a relação entre Renfield e Rebecca, que possui várias sugestões de ser romântica, jamais se concretiza nesse âmbito. Não estou dizendo, com isso, que um homem e uma mulher devem necessariamente formar um casal quando protagonizam uma obra, mas são tantos sinais que o filme dá de que eles caminham para isso que se torna frustrante quando não acontece. Mais honesto seria construir uma amizade entre eles sem qualquer insinuação romântica.
Ao final, o que fica é uma obra interessante, um tipo de matinê para maiores, que apesar dos deslizes mencionados e de não atingir plenamente seus objetivos, não deixa de proporcionar 1h30 de diversão.
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Cineasta e roteirista, formado em Letras e graduando em Cinema, respira literatura, filmes e séries desde que se entende por gente. É viciado em sci-fi e terror, e ama Stephen King, Spielberg e Wes Craven. Tem mais livros em casa, e séries e filmes no computador de que seria humanamente possível ler e assistir, mas não vai desistir de tentar. Não consegue lembrar o que comeu ontem, mas sabe decorado os vencedores do Oscar de melhor atriz do últimos trinta anos (entre outras informações culturais inúteis).