She-Hulk: Defensora de Heróis (She-Hulk: Attorney At Law, 2022 -) é a oitava série do Universo Cinematográfico da Marvel, e a primeira a se autoproclamar uma comédia de advocacia ao invés de uma série de super-herói.
De WandaVision (2021) a Ms. Marvel (2022), apesar das diferenças nas peculiaridades de cada uma, das pequenas ousadias que ainda não são permitidas nas telas de cinema, as séries do MCU se mantiveram firmemente no território de séries de herói. É óbvio que, a Marvel Studios tendo construído seu legado em cima de dezenas de seres com habilidades especiais e a missão de fazer o bem, isso é de se esperar – grandes vilões, trajes brilhantes e lutas espetaculares são inerentes do gênero, e esperar algo diferente é equivalente a reclamar da falta de opções vegetarianas em um açougue.
Ou seria, se a enchente de conteúdo oferecida pelo MCU, principalmente desde que as séries se juntaram ao arranjo da empresa, não beirasse o abusivo. No campo das telonas, o número de filmes por ano aumentou de dois para três (em 2022 as entradas foram Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, Thor: Amor e Trovão e Pantera Negra: Wakanda Para Sempre, este último ainda aguardando sua estreia); nas telinhas, mais três (Moon Knight, Ms. Marvel e She-Hulk). Todas as obras apresentam todas as marcas tradicionalmente associadas à Marvel e à indústria dos super-heróis.
Dentro desse cenário, uma série que se propõe a escapar da tão famigerada “fórmula da Marvel” e fazer algo diferente com seu enredo e personagens surge como uma brisa de ar-fresco para os fãs (ou pelo menos a parcela de fãs que não se sente ofendida com protagonismo feminino). E, até mesmo em seus piores momentos, She-Hulk não pode ser acusada de se ater a uma fórmula – nenhuma fórmula.
A série acompanha Jennifer Walters (Tatiana Maslany), uma advogada na faixa dos 30 com uma carreira em ascensão que vê sua vida transformada ao se envolver em um acidente de carro com seu primo Bruce Banner (Mark Ruffalo) e, no processo, ter contato com seu sangue, tornando-se assim uma Hulk. Jen não está particularmente interessada, pelo menos a princípio, a aprender os meandros de ser uma Hulk ou em se juntar aos Vingadores. Jen quer, como tantos outros no início de suas jornadas, uma vida normal.
É aí, no entanto, que a série apresenta uma de suas sacadas mais interessantes. Ser um Hulk e ser uma She-Hulk são conceitos completamente diferentes, principalmente aos olhos da sociedade. She-Hulk é tradicionalmente bela, com cabelos longos e lustrosos e um corpo de dar inveja a qualquer halterofilista, independente do gênero. Jen, apesar de colher os benefícios de sua transformação – um emprego confortável em uma firma representando clientes com super-poderes e uma quantidade impressionante de encontros no equivalente da Marvel do Tinder – também se vê ofuscada por sua contraparte, que obtém mais sucesso pessoal e profissional do que Jen seria capaz sozinha. Tatiana Maslany brilha ao apresentar a dualidade da personagem com ternura e bom-humor: She-Hulk pode não ter a fúria descontrolada e despertar o medo como seu primo, mas ela é uma mulher, e os desafios de existir como mulher e super-heroína nunca haviam sido abordados tão explicitamente antes.
A roteirista Jessica Gao (responsável pela criação do Pickle Rick, em Rick and Morty) aproveita a oportunidade para brincar, também, com a recepção polêmica que qualquer obra de entretenimento protagonizada por mulheres recebe. A comunidade fictícia Intelligencia carrega quase tanta toxicidade quanto o lado mais incel do Reddit, e o nível de fragilidade masculina e ódio gratuito caminha com sucesso à linha tênue entre cômico e ameaçador.
Apesar da sagacidade dos comentários e da protagonista, o compromisso de She-Hulk em fugir do tradicional acaba sendo o arranha-céu do qual a série se atira com prazer. Durante cinco episódios She-Hulk se mantém fiel à proposta de ser uma comédia de advocacia, com resultados moderadamente bem-sucedidos. Porém, em uma decisão executiva que beira o incompreensível, a série introduz um episódio de garrafa (episódios de trama isolada do enredo principal) no meio da temporada, exatamente no ponto em que a história deveria estar ganhando a solidez que estava faltando. Como se isso não fosse o bastante, o episódio seguinte é ainda outra trama isolada, deixando a série com apenas duas semanas para estabelecer um enredo principal e sua conclusão.
No penúltimo episódio há ainda a aguardada aparição de Matt Murdock, o Demolidor (Charlie Cox), que, apesar de ter sido talvez a não-surpresa mais aguardada pelos fãs, apenas soma ao problema estrutural existente.
No fim das contas, a season finale de She-Hulk tem a missão de, em seus trinta minutos: revelar quem é seu vilão, concluir a jornada pessoal de Jen, amarrar as diversas pontas soltas deixadas nos episódios anteriores, e derrotar o vilão. Não havia nenhum cenário em que isso fosse possível, então o time por trás de She-Hulk decidiu, em uma jogada ao mesmo tempo ousada e preguiçosa, sequer tentar.
Quebras da quarta parede que em episódios anteriores se resumiam a curtos comentários se tornam um verdadeiro arrombamento no episódio final. Literalmente – She-Hulk quebra as telas que a continham e decide seu final com aqueles que realmente importam, os roteiristas e uma versão Hal 9000 do Kevin Feige (produtor e cabeça de todos os projetos do MCU). O entretenimento da cena é inegável, mas ela também revela algo importante: a Marvel Studios está perfeitamente ciente dos próprios pontos fracos, e é até capaz de antecipar as próprias críticas, mas ainda está tateando no escuro em como resolvê-las.
Para além disso, She-Hulk também peca ao introduzir atrizes de peso como Renée Elise Goldsberry (de Hamilton) no papel da misteriosa e impiedosamente eficaz advogada Mallory Book, e Jameela Jamil (de The Good Place) como a influencer de beleza com superpoderes Titania, e prosseguir a não aproveitar o potencial presente nas personagens. As personagens de Josh Segarra e Ginger Gonzaga, Pug e Nikki, respectivamente, também entram e saem de órbita na trama com certo carisma, mas pouca caracterização.
She-Hulk está longe de ser o pior que a Marvel pode oferecer, e seus momentos de clareza e astúcia são alguns dos mais inovadores e divertidos da última década do universo cinematográfico. Porém, as dificuldades de identidade da personagem se refletem na narrativa da série, que na maior parte do tempo acaba por ser disjunta e esporádica. É difícil prever o futuro da protagonista no MCU, porém é seguro dizer que, com Tatiana Maslany no papel e um time criativo certamente capaz, She-Hulk possui todas as ferramentas necessárias para crescer e se tornar a quebra de padrões que se propôs a ser desde o início.
Ada Albano
Leitora, cinéfila e repleta de obsessões passageiras. Sempre disposta a conhecer obras estranhas e se entreter com conteúdo de qualidade duvidosa.
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