O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder – O começo de uma jornada inesperadamente incrível

Para mim, falar de qualquer coisa relacionada ao mundo criado por Tolkien é um verdadeiro exercício de equilíbrio entre a emoção e a razão. Considero a trilogia O Senhor dos Anéis (The Lord of the Rings, 2001-2003) não somente a melhor trilogia do cinema, mas uma das maiores realizações artísticas da humanidade. Mesmo O Hobbit (The Hobbit, 2012-2014), com seus três filmes irregulares e, muitas vezes, com a narrativa esticada à exaustão, ainda possuem qualidades e trazem o acalento de nos levar à Terra-Média, um universo tão ricamente criado que nos faz desejar nunca abandoná-lo. 

Após O Hobbit: A Batalha do Cinco Exércitos (The Hobbit: The Battle of Five Arms, 2014), várias possibilidades de adaptações foram especuladas pelos fãs no decorrer dos anos; porém, nenhuma delas nos preparou para o que de fato aconteceu. Em 2017, a Amazon anunciou a compra de parte dos direitos de O Senhor dos Anéis, em um acordo que ganhou manchetes pelo nível de comprometimento financeiro (na casa do bilhão de dólares) e pelo mistério a respeito do que seria adaptado. Aos poucos, foram sendo reveladas as informações sobre o projeto, como o número de temporadas previstas (cinco), bem como qual seria a história a ser contada. 

Com a divulgação pontual de informações instigando cada vez mais a curiosidade não somente dos fãs, mas do público em geral, a única certeza que se poderia ter é que seria um evento “televisivo” (entre aspas mesmo, já que é uma série exclusiva para streaming) como nunca visto, e que se fracassasse, a Amazon sofreria um vexame astronômico. Nada muito diferente da própria trilogia original, que também foi um gigantesco investimento de risco para a New Line/Warner.

Marcada a estreia para setembro de 2022, o projeto ganhou um nome oficial – O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder – e a história principal foi finalmente revelada: baseada nos apêndices de O Senhor dos Anéis, teríamos toda a trajetória que levou à forjadura dos 19 anéis de poder que Sauron depois usaria para tentar controlar os principais povos da Terra-Média, através do famoso Um Anel, narrativa que havia sido vista brevemente no prólogo de O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring, 2001).

Toda essa introdução é necessária para entendermos que Os Anéis de Poder não é somente uma série de TV qualquer, baseada em um livro famoso. Ela traz para a TV todo o escopo do cinema-evento (filmes de grande orçamento e marketing que, teoricamente, TODOS têm que ver, como Vingadores), algo que já havia sido esboçado com Lost (2004 – 2010) e que vem sendo aprimorado, principalmente, pela Netflix, com séries como Stranger Things (2016 -). Além disso, ao mesmo tempo que dá um passo além nessa questão, com um nível de produção capaz de superar muitos filmes de grande orçamento, Os Anéis de Poder aposta numa história que se constrói aos poucos, que remete muito à forma como é a narrativa nos livros e, portanto, é Tolkien em toda sua essência. 

Nesta primeira temporada, vemos diversos núcleos que, inicialmente, se desenrolam independentes, mas que giram, em menor ou maior grau, em torno de um mistério central: a localização de Sauron, que desapareceu após a derrota de seu mentor, Morgoth, o primeiro Senhor do Escuro da mitologia tolkeniana. Através dos olhos da elfo Galadriel (Morfydd Clark), – obcecada em destruir de vez Sauron – vemos que, mesmo que muitos acreditem que ele tenha desaparecido definitivamente, sua influência e maquinações ainda permeiam a história. Em paralelo a isso, outros núcleos são apresentados: os pés-peludos, ancestrais nômades dos hobbits, que têm suas vidas mudadas ao encontrar um Estranho (Daniel Weyman) que caiu do céu; os humanos habitantes das Terras do Sul, que passam a ser atacados por orcs e acabam liderados por uma humana, Bronwyn (Nazanin Boniadi) e um elfo, Arondir (Ismael Cruz Córdova); a relação entre o elfo Elrond (Robert Aramayo) e o príncipe anão Durin IV (Owain Arthur) e o dilema que eles vivem entre priorizar a amizade ou o compromisso que cada um tem com seu povo; e a ilha de Númenor, reino humano onde Galadriel vai parar, junto com o misterioso Halbrand (Charlie Vickers).

Lidar com esse grande número de tramas é um desafio para qualquer roteirista, mas, apesar de um certo desequilíbrio na metade inicial da temporada, os showrunners da série conseguem lidar com tudo sem grandes prejuízos. Ainda assim, é possível perceber que algumas tramas se estendem mais que outras, e que o tempo dedicado a determinado núcleo é menor que a outros. Sem adentrar no campo dos spoilers, cito a história dos pés-peludos, cujo mistério a respeito do Estranho se estende um pouco além do necessário, ainda que seja compreensível a decisão dos roteiristas fazerem isso para que essa história atinja seu clímax em simultâneo a outra questão principal da temporada, que é a revelação de quem é Sauron, pois assim eles estabelecem um paralelo entre as duas narrativas (ainda que ambas as tramas sejam as únicas que não se intercruzem). De todo modo, são pecados pequenos perante a qualidade da produção, e de certa forma, compreensíveis quando se chega ao final da temporada e podemos ver o panorama completo do que foi pretendido pelos criadores. 

Ainda em relação à construção narrativa, é louvável como a noção de planejamento dos  showrunners é apurada: longe de investirem em ganchos bombásticos a cada episódio, eles priorizam uma progressão que vai, episódio a episódio, montando as peças que levam até um clímax, no episódio 6 (que, junto ao 7, são os melhores da temporada, tanto em nível de roteiro como de atuações e direção), chocante e inesperado. E tudo resulta em um último episódio que responde (nem sempre diretamente), de forma coerente e bela, as principais questões da temporada, deixando em aberto apenas os pontos que precisam de um investimento maior de tempo e que, portanto, serão melhor trabalhados nas próximas temporadas.

Sobre a parte técnica, qualquer coisa que seja dita é correr o risco de chover no molhado: é primoroso o trabalho de reconstruir um mundo já tão familiar sob uma nova luz, sem renegar o que já foi visto nos filmes, mas complementando-os e expandindo esse universo. Todo o trabalho de direção de arte, figurino e efeitos casa perfeitamente o digital com o prático, e mostra esse mundo de forma coerente com o ponto na cronologia no qual a história se situa, milhares de anos antes da trilogia cinematográfica. Assim, aquela paleta sóbria, voltada para tons terrosos, com um visual que remete a séculos de existência, é substituída por cores vibrantes que mostram um mundo em seu auge, antes de todas as trevas pelas quais terão que passar. 

Ainda nesse campo, o trabalho de fotografia consegue conjurar toda a mística desse mundo, criando cenas tão belamente desenhadas que quase se tornam pinturas, reforçando a escala épica da história e, ao mesmo tempo, auxiliando na construção narrativa através de ângulos e inserções de simbolismos que abarcam o íntimo dos personagens e os relacionam ao estado do mundo em que vivem. Outro ponto a ser destacado é a trilha musical, que segue o trabalho extraordinário de Howard Shore na trilogia (aqui responsável apenas pelo tema da abertura), sem, no entanto, simular o que ele fez, mas possuindo uma identidade própria que, mesmo que não apele para temas tão facilmente reconhecíveis, é extremamente eficiente.

Como Os Anéis de Poder é uma série focada em narrativa e construção de mundo, as atuações, a princípio, não se destacam, exceto por Morfydd Clark, Ismael Cruz Córdova e Nazanin Boniadi. Isso é ruim? Não exatamente, visto que esta é apenas uma outra forma de concepção artística. E isso não significa que os personagens são sacrificados em prol da história, mas sim que é preciso de tempo para que o espectador se apegue a eles e compreenda o trabalho de atuação. É interessante destacar também que, mesmo seguindo a clássica luta do bem contra o mal a série não apela para o maniqueísmo. Pelo contrário, os defeitos dos personagens são claramente postos em evidência, pois o que interessa aos criadores não é tornar essa uma narrativa de bonzinhos versus vilões, mas sim mostrar que a escuridão e a luz existe dentro de todos (sim, até de Sauron) e o que nos define como bons ou maus é o que decidimos fazer com esses dois lados que habitam dentro de nós. 

Ao final, fica então a sensação de que, apesar de alguns percalços no decorrer dessa temporada inicial, Os Anéis de Poder é um trabalho feito com paixão, cuidado e respeito pela obra de Tolkien, repaginando algumas questões para o século XXI (como a extremamente necessária e bem-vinda diversidade racial) sem que para isso seja preciso desvirtuar a obra atemporal desse grande mestre. 

É o começo promissor de uma jornada que promete ser inesquecível.


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