A Mulher Rei – Uma nova era de heroínas para o cinema

É bem interessante para mim estar aqui redigindo este texto, um texto sobre um filme de guerra, pois apesar de muito ser abordado neste filme ainda é um filme sobre guerra. Nunca fui fã do gênero, raramente me apetece assistir, mesmo com um elenco incrível e todo aquele tema de “a guerra é ruim”, na maioria das vezes uma propaganda militar americana. A Mulher Rei (The Woman King, 2022) não deixa de ser um filme de guerra, mas é capaz de trazer ao subgênero elementos não previamente explorados como o peso destes conflitos de uma forma mais crua. Não há muita maquiagem sobre estes elementos: a dor, o sangue, o peso de ser uma nação de guerreiros no continente africano durante a época do tráfico de escravos. 

Contando a história das Agojie, um exército apenas de mulheres guerreiras, encarregadas de defender a nação Daomé na África Ocidental de outras nações vizinhas, de colonizadores europeus e dos males do tráfico humano, A Mulher Rei nos trás a atriz Viola Davis em um lugar novo. Mesmo com os anos de trabalho da atriz, seus outros papéis não chegaram a ser tão fisicamente exigentes quanto eram emocionalmente e o papel de Nanisca lhe exigiu isso. Nanisca é a líder das Agojie, com uma história de sobrevivência e de inúmeras vitórias sobre inimigos e um grande laço de confiança com o rei da nação, este interpretado por John Boyega

Por muito tempo o gênero de ação no audiovisual foi dominado por homens brancos, especialmente sob uma perspectiva norte-americana ou europeia, então chegar às salas de cinema e assistir A Mulher Rei é um importante passo. O filme traz um elenco repleto de talentos femininos, mulheres negras retintas, com incríveis e bem coreografadas cenas de ação. Ao longo do filme conseguimos perder o fôlego, vibrar, nos emocionar, sem exatamente saber o que seguiria. São como peças muito bem estruturadas, uma junto das outras, formando uma peça familiar e assim mesmo totalmente original. 

Ao longo da obra temos contato com as demais guerreiras Agojie, através do olhar de uma das novas recrutas chamada Nawie, personagem interpretada pela atriz Thuso Mbedu. Criada por sua família fora dos muros do palácio, Nawie se surpreende ao conhecer o mundo das Agojie onde as mulheres não são submissas a homens ou suas vontades e olhares. A mesma então toma como objetivo próprio não apenas se tornar uma Agojie. mas se provar para a personagem de Viola Davis. Sentimos a cada momento durante o filme a relação das duas se tornar mais complexa, ao mesmo tempo que mais fraterna e companheira. Thuso Mbedu consegue ter uma química de cena muito boa com Davis, as duas carregam grande parte do contexto dramático do filme sem o fazer parecer exaustivo ou descartável. Para a história entre as personagens era necessário duas atrizes extremamente capazes e mesmo não tendo o mesmo histórico de Viola Davis, a atriz mais jovem é capaz de sustentar o filme como um de seus pilares. 

Ainda nos dias de hoje, quando a produção de obras protagonizadas e também dirigidas por corpos negros, ainda não é regra, é importantíssimo ir ao cinema e se deparar com histórias onde os personagens negros possuem uma complexidade, assim como um respeito. A Mulher Rei consegue dar à suas personagens uma tridimensionalidade, trabalhando um difícil período sem desumanizá-las, assim como não romantiza a escravidão. Inclusive o debate sobre a escravidão e o comércio de pessoas está bem presente no filme, tendo na personagem de Davis a sua maior opositora. Aos moldes de seu próprio filme, melhor classificado, como a própria atriz cita, como “um drama histórico com ação”, a personagem de Viola é uma heroína no maior sentido da palavra. 

Muito se fala sobre a participação e o protagonismo de Viola Davis no longa, mas como a própria atriz fala, o filme é sobre representação para mulheres negras retintas e seu elenco reflete isso para muito além de Davis. Lashana Lynch brilha com a personagem Izogie, sua fidelidade à Nanisca e a responsabilidade sobre Nawie guiam muito o olhar do espectador durante a trama. Ao longo do filme, Lynch protagonizou muitas cenas de humor e ao passo que tem todo o tempo de tela necessário para se mostrar como guerreira. A praticidade com que o filme mergulha na cultura destas guerreiras, dessa nação, deixando muito bem seu elenco ter o momento de brilho e não apenas isso, desenvolver seus personagens secundários de forma extremamente adequada. Vê-la neste filme me deixou com muito ânimo para acompanhar cada vez mais a atriz tendo papéis de destaque e sua chance de brilhar.

Trazer a cultura do povo africano é uma das grandes prioridades da direção de arte do longa, assinada por Akin McKenzie, enquanto os figurinos estão sob a responsabilidade de Gersha Philips. Fazer um filme de época pode cair em inúmeros lugares comuns, mas toda a cenografia e composição do filme se encaixam muito bem num contexto de originalidade da obra. Trazer a beleza para o cenário da guerra no continente africano é um trabalho bem difícil, mas a obra consegue traduzir bem inúmeros conceitos inexplorados antes no audiovisual. Espero que esse filme faça mais pessoas se interessarem em ir atrás de obras do audiovisual africanas. 

Outro nome associado ao filme é o de Polly Morgan, a diretora de fotografia é a mesma de Um Lugar Silencioso: Parte 2 (A Quiet Place Part II, 2020) e outros filmes, seu trabalho aqui mostra uma bela capacidade de dominar diferentes gêneros cinematográficos. Estamos vivendo numa época onde cada vez mais filmes blockbusters perdem seu cuidado com a fotografia priorizando efeitos especiais e cenários fabricados por CGI, então se torna um grande peso quando uma obra como A Mulher Rei apresenta tanto cuidado com sua imagem. As cores mais realistas, com muito cuidado em seus planos e os cuidados com suas personagens e a melhor forma de enquadrar uma história tão sensível, apesar de estarmos falando de uma obra focada na ação. 

O primeiro trabalho da diretora Gina Prince-Bytherwood ao qual assisti foi o original Netflix The Old Guard (2020) e os dois filmes apresentam uma relação entre passado e presente, além de todo o lance de mentoras mulheres. Ambos também são filmes de ação, com cenas muito empolgantes capazes de convencer, sem medos de serem violentos. Há muita alma na direção de Prince-Bytherwood e se The Old Guard já não tivesse me deixado ansiando por outros filmes de ação dela, espero que com A Mulher Rei ela possa se consolidar mais com o gênero. 

Com o roteiro assinado por Dana Stevens, o filme estrelado por Viola Davis, Thuso Mbedu, Thuso Mbedu e John Boyega chegou aos cinemas brasileiros no dia 22 de setembro. É uma experiência particularmente única, da qual espero que possam sair com o mesmo entusiasmo com o qual sai.


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