Há poucos anos me olho no espelho e me enxergo enquanto uma mulher negra. Isso também faz parte da minha identidade, hoje em dia faço questão de me reconhecer enquanto mulher preta, de tentar estudar e compreender um pouco mais sobre o que é ser um preto no Brasil, esse país tão conhecido por samba e futebol, mas que jamais pode ser resumido dessa forma. Dentro do Brasil também tem racismo, tem marcas da escravidão, aliás, em alguns casos, a escravidão só mudou de nome.
Em Medida Provisória (2020), primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos, e que traz um elenco de peso, como Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah e até mesmo uma breve participação do Emicida, nós acompanhamos a história de três amigos pretos que vivem no Brasil e que passam a acompanhar uma nova campanha do governo, que deseja pagar suas dívidas com a escravidão devolvendo o povo preto para a África, sua terra natal. Na trama, eles são chamados de “melanina acentuada”, termo criado numa tentativa de não dar os devidos nomes à quem assim se identifica. Isso me fez rir em diversos momentos, uma risada enquanto pensava em quão patético e quão a cara do Brasil atual é essa tentativa de usar novos nomes, nomes que talvez, para os brancos, para eles que estão no poder, não nos ofendam, não nos diminuam.
Aos poucos o roteiro vai transformando esse enredo em algo completamente absurdo, mas ao mesmo tempo tão possível que causa até arrepios pelo corpo. A medida tomada para tentar selar esse pacto para devolver os negros para a África é aceita como uma medida não mais provisória, passa a ser permanente, passa a ser obrigatório que o povo preto se entregue e aceite de forma calma e mansa que serão enviados para um outro país, para o país de onde pertencem, um país onde haverá identificação e todos serão iguais. Bem, tenho para mim que isso tudo que falei até aqui, que nos parece tão horrível e absurdo, parece extremamente plausível diante do que o país tem vivido nos últimos anos. Tentativas de se mostrarem acolhedores, inclusivos, mas somente com os seus pares, tudo que foge da norma, precisa ser parado, precisa ser expulso, precisa morrer.
Muitas vezes escutei que, às vezes, para viver, a gente precisa morrer antes. É sobre isso que o filme me enche os olhos, uma união de pessoas pretas ainda resiste no Brasil durante o filme. Mas como? Se unindo, se transformando em uma comunidade, transformando a arte, a poesia e o sofrimento em catalisadores para enfrentar uma guerra que existiu desde sempre, uma guerra fria tantas vezes, mas uma guerra tão clara e exposta que, para mim, quem se cala é porque está em cima do muro, e estar em cima do muro é dar força para quem está no poder atualmente e tem um plano claro de extermínio de tantas minorias.
Sei que pouco falei sobre o longa em si, mas nesse texto eu queria contar um pouco de tudo o que foi passando dentro de mim enquanto assistia esse filme tão bonito, tão forte, de tanta entrega por parte de cada um dos envolvidos. Existe necessidade de se pegar em armas, ir brigar, revidar, devolver na mesma altura? Talvez não. Mas também não enxergo a possibilidade de verdadeira mudança se o sujeito não se faz presente, se toda essa raiva e angústia não se transformarem em algo maior, que realmente nos mova.
Para mim, roteiro, trilha sonora, atuações, edição e tudo o mais presente no filme, são pontos altos. Esse é daqueles em que tudo está em absoluta harmonia, em que a mensagem fica absolutamente clara e cada pedaço do que foi feito para se chegar na obra final, importa e é essencial. E, por fim, são 1484 dias enquanto escrevo esse texto. Quem mandou matar Marielle?
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Psicóloga, apaixonada pela psicanálise e absolutamente obcecada por true crime, thrillers e máfia. Falo mais que a mulher da cobra e poderia viver facilmente apenas de livros, séries e filmes.