3% – O Sci-Fi brasileiro tinha minha curiosidade, agora tem minha atenção

“Filme brasileiro não presta”, “cinema brasileiro é só comédia sem graça”, “Nem perco meu tempo vendo obras brasileiras”. Reconheceu? Essas são frases frequentemente ditas em rodas de amigos quando o assunto é cinema nacional. Porém, não culpo as pessoas por terem essa mentalidade, são essas comédias da Globo Filmes que lotam as salas de cinema, logo são as que mais têm espaço, e o público fica com a falsa impressão que o cinema brasileiro é feito apenas de filmes desse estilo.
Mas, com o mínimo de interesse e esforço é possível ver o quão rico é o cinema nacional, nem precisa sair muito do mainstream e da zona de conforto, Bingo: O Rei das Manhãs (2017), O Auto da Compadecida (2000), Central do Brasil (1998), Tropa de Elite (2007) e Cidade de Deus (2002), são todos famosos e ótimos exemplos, já um pouco fora dos holofotes mas ainda assim conhecidos temos Aquarius (2016), Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), O Menino e o Mundo (2013), O Lobo Atrás da Porta (2013) e Que Horas Ela Volta? (2015). Sem falar dos que passam ainda mais despercebidos pelo grande público, como Boi Neon (2015), A Vizinhança do Tigre (2016) e Corpo Elétrico (2017). Ou seja, o cinema brasileiro tem muita variedade e muita qualidade, só o povo brasileiro que não vê.
A falta de conhecimento e interesse do espectador junto com o complexo de vira-lata torna sempre difícil que uma obra nacional caia nas graças do público, não sendo diferente quando a lógica se aplica às séries, como a série 3%.
Em 2011, antes de ser comprado pela Netflix, o projeto foi lançado no youtube e obteve mais de 1 milhão de visualizações. Isso chamou atenção da gigante do streaming que adquiriu os direitos da obra e, em 2016, lançou a primeira temporada para os seus assinantes.
Criada por Pedro Aguilera, 3% conta a história de um futuro meritocrático distópico em que o indivíduo que completa 20 anos recebe a oportunidade de participar de um processo onde somente 3% dos candidatos são aprovados, sendo os vencedores retirados do Continente e levados para viver o resto de suas vidas no Maralto, uma ilha paradisíaca onde a tecnologia é avançadíssima e os habitantes aparentemente vivem em harmonia, sem nenhum problema social.
A primeira temporada da série foi massacrada pelo público brasileiro, mas curiosamente elogiada por diversos sites gringos. As maiores reclamações daqui estavam nas atuações dos atores, comparadas com as de novelas, na ambientação pouco realista e no enredo que não sabia para onde queria ir e se atrapalhava na mensagem que queria transmitir.
As novelas brasileiras são conhecidas e adoradas em vários países, sendo O Clone transmitida até hoje em alguns lugares do mundo. Entretanto, as atuações são mesmo feitas para que não seja preciso olhar para a TV para se entender o que está acontecendo na cena. Isso faz com que os atores deem o texto direitinho, letra por letra, tornando as atuações caricatas e os diálogos pouco naturais. Isso, aliado à fórmula repetitiva, acabou caracterizando a novela como um entretenimento pobre. E, embora sejam uma parte importante da nossa cultura, o público não espera nada parecido com o que existe na TV aberta quando assiste uma série, mesmo que algumas das nossas mini-séries sejam bastante elogiadas pelas boa histórias e interpretações, como Justiça, Dois Irmãos e Amores Roubados.
Apesar de tudo isso, o projeto agradou lá fora e foi renovado. Em 2018 ganhou a sua segunda temporada. E fiquei positivamente surpreso, o retorno da série já nos primeiros minutos mostra o claro aumento no orçamento, evoluindo o CGI, os figurinos e a ambientação, além de melhorar a direção e a fotografia de todos os 10 novos episódios.
O novo ano investiu no desenvolvimento do mundo e nas dificuldade de cada um dos personagens para sobreviver nele, diferente da primeira temporada que apenas mostrou como era a seleção e as provas do processo, passando por cima de como era aquela sociedade. O Maralto e o Continente tiveram suas origens e ideologias trabalhadas, cada um deles ganhando seus respectivos núcleos, estes conversando entre si e sendo importantes até o último episódio. Esse equilíbrio narrativo foi muito bem feito e a série obteve um ritmo excelente, descartando quase por completo a encheção de linguiça e as voltas desnecessárias, muito frequentes no seu primeiro ano.
Outro ponto alto foi a melhora das atuações, principalmente do elenco jovem, Michelle (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Joana (Vaneza Oliveira) e Rafael (Rodolfo Valente) estão bem mais confortáveis nos seus respectivos personagens, além de cada um deles ser força motriz ativa na trama, assumindo um papel importante no Continente e no Maralto. Contudo, a atuação do Ezequiel (João Miguel) continua sofrível. Não sei dizer se é um problema de direção ou do próprio ator, mas a atuação contínua robótica, e sem muita expressão, parecendo que ele está lendo um teleprompter em todas as cenas. Em contrapartida, o núcleo adulto obteve uma ótima adição nessa temporada, com a vilã Marcela (Laila Garin) roubando a cena desde a sua primeira aparição.
Uma coisa que me chamou atenção foi o lembrete de que 3% é um Sci-Fi brasileiro e não um Sci-Fi qualquer feito por brasileiros. No meio da temporada, depois do processo ganhar toda a complexidade possível, seja social e até mesmo religiosa, a série dedica alguns minutos de um episódio para mostrar um bloquinho de carnaval, com música, fantasias, bonecos de Olinda e bebida, sendo este o momento de despedida dos personagens para com aquela sociedade, antes de encarar o evento que irá definir o resto das suas vidas.
A segunda temporada de 3% conseguiu evoluir em tudo, finalmente decidindo o que quer ser e para onde quer ir. Mesmo com alguns clichês, atuações canastronas e conveniências de roteiro, a série demonstrou ser capaz de sustentar uma trama coerente e tornar seus personagens críveis, evoluindo com as críticas recebidas e deixando em aberto um excelente plot para a terceira temporada, mostrando que a produção brasileira tem potencial, basta ter o devido apoio.