Cabeça de Nêgo – Escancarando um Brasil que muitos fingem não ver

No segundo semestre de 2016, ocorreram, em vários estados do Brasil, inúmeras ocupações de escolas públicas por estudantes secundaristas que reivindicavam desde a revogação do projeto de lei da “PEC do Teto de Gastos” até melhorias na infraestrutura das escolas e na qualidade da merenda escolar. O movimento foi mais um capítulo de uma longa crise política que se aplacava no país e que se estende até hoje, com consequências que ainda estamos tentando compreender. O país havia acabado de sofrer o golpe de estado que tirou Dilma Rousseff da presidência, enquanto o reaparecimento de uma direita ultraconservadora começava a se aproveitar de um sentimento de descrédito crescente em certas camadas da sociedade para despontar dentro e fora da política.

Naquela ocasião decidi visitar uma das escolas ocupadas aqui no Ceará que, não coincidentemente, fora a escola onde eu cursei o Ensino Médio e onde lecionei durante algumas semanas como parte da disciplina de Estágio da graduação em Licenciatura em História. Na entrada me identifiquei como ex-aluno do colégio e estudante de Cinema na Universidade Federal do Ceará e, após algumas repostas, fui autorizado a entrar na instituição como visitante. O que encontrei ali me deixa feliz até hoje. Vários jovens organizados, com pautas superinteressantes, um cronograma de atividades que iam desde debates sobre temas políticos e sociais relevantes até apresentações culturais, entre batalhas de rap e recitais de poesias. Naquela mesma época meu filho havia acabado de nascer, e o desafio daqueles primeiros meses junto com a angústia que o contexto político de então me obrigava a passar, naquelas horas de visita àquela escola, foram ofuscados, mesmo que rapidamente, por um fio de esperança.

Assistir Cabeça de Nêgo (2020) me remeteu àquele mesmo sentimento de quando fiz aquela visita. Escrito e dirigido por Déo Cardoso, o longa trata de forma objetiva e muitas vezes didática questões que permeiam uma realidade periférica de um Brasil que cada vez mais precisa ser vista e revista. E, como o filme mesmo nos mostra, nem sempre a grande mídia é uma janela confiável para tentarmos compreender essas realidades, mas o cinema – especialmente este cinema que os atuais mandatários tanto temem, e que é tantas vezes vítima de uma clara censura – me parece ser um dos meios mais potentes em “descobrir” esse Brasil.

Saulo (Lucas Limeira) é um jovem preto, estudante de uma escola pública de Ensino Médio, que cada vez mais parece interessado na História das lutas do movimento negro, especialmente os Panteras Negras, através de um livro emprestado de uma professora. Engajado no grêmio estudantil e decidido a denunciar os problemas estruturais de sua escola junto com alguns amigos, Saulo acaba sendo alvo de certa perseguição por parte da diretoria e de alguns professores, e após ser vítima de racismo por parte de outro estudante é chamado à diretoria, mas decide, como protesto, fincar o pé na escola e só sair quando várias das reivindicações, suas e de vários outros alunos, fossem acatadas pela direção.

O filme segue uma estrutura propositalmente simples, mas extremamente eficaz, construindo uma crescente tensão que perpassa não só a trajetória de Saulo durante o período que fica confinado na escola, como de vários outros personagens secundários, seus colegas de luta, sua mãe, as professoras que o apoiam, e – um dos personagens mais emblemáticos – o porteiro da escola. A forma estereotipada com que o filme representa alguns deles, e ainda mais os “vilões”, como o guarda noturno, o diretor, o Secretário (Político), e a própria polícia, é também proposital e benéfica para que a mensagem do filme seja passada. Mas ao simplificar a forma Déo jamais deixa de lado a complexidade dos temas propostos, valorizando em alguns momentos um estilo documental que traz o filme rapidamente para nossa realidade e que se beneficia de certa desordem dentro da formalidade em que se encontra. Além disso a utilização de uma linguagem atual, como o uso de câmeras de celular, ou mesmo nas interpretações (a sequência da bagunça na sala de aula é simplesmente genial de tão natural) aproxima perfeitamente o filme de quem ele realmente tem intenção de se aproximar, jovens periféricos, principalmente pretos.

A catártica e grandiosa sequência final, seguida de imagens reais de violência policial durante manifestações pelo país, aos moldes Spike Lee Joint, confirmam a potência transformadora que o filme constrói durante seus pouco mais de 80 minutos, cercado de detalhes tocantes como o encontro de Saulo com sua mãe, as projeções na parede como uma metáfora de anos de lutas e guerreiros permeando e fervilhando a cabeça do jovem, Cabeça de Nêgo evoca, sim, aquele sentimento de esperança, mas ele vem junto com um cutucão, um despertar, mesclado a um ódio pela injustiça estrutural que, se não sofremos na pele nós mesmos, sabemos muito bem que existe, e o filme faz ser impossível ignorar.


VEJA TAMBÉM

Alice Junior – O protagonismo trans no Brasil

Segunda Chamada – Educação e diversidade