Heartstopper (2022 -) é a mais nova adaptação em formato de série da Netflix, baseada no webcomic homônimo criado por Alice Oseman. Oseman trabalha também como roteirista e escritora na série, possibilitando uma maior fidelidade, não apenas ao material de origem mas à sua essência. A história conta sobre um romance entre dois garotos da mesma escola, assim como lidar com as pedras no caminho deste relacionamento, o processo de aceitação da própria sexualidade e também conflitos psicológicos internos. Desde seu lançamento a série tem sido extremamente aclamada e bem recebida pelo público, especialmente os fãs da obra original.
O elenco do seriado conta com muitos rostos novos, um elenco capaz de trazer à vida os personagens criados por Alice Oseman da melhor forma possível. É uma frequente preocupação e incômodo o quanto seriados e filmes optam por representarem jovens e adolescentes com elencos mais velhos. Isso não é apenas irreal mas cria uma lógica visual de adolescentes prejudicial para a autoimagem de jovens, então é de se elogiar sim uma obra com um grande alcance escolher um elenco verdadeiramente jovem para interpretar seus personagens. Os protagonistas Kit Connor e Joe Locke têm apenas 18 anos no momento do lançamento da obra na Netflix. Diferentes de obras como Elite (2018 -), Heartstopper não conta com uma inadequada adultificação de personagens adolescentes, ao contrário disso a série trás uma juventude com cara e vivências de juventude. Não é aqui falando o que adolescentes podem ou não fazer, como podem ou não parecer, mas é importante reconhecer a quantidade de jovens em outros seriados da Netflix em situações mais maduras e um tanto irreais e sob um olhar até muito sexual.
Joe Locke interpreta Charlie Spring, um jovem gay assumido da escola Truhan, que se encontra em uma relação com alguém não disposto a lhe assumir, mas também com alguém responsável por constantemente lhe colocar para baixo. Ao conhecer o atleta jogador de rugby (e Golden Retriever em forma humana), Nick Nelson, sua noção de romance e expectativas são abaladas. Ao primeiro olhar, Nick é hétero, esse é parte do arco narrativo do personagem dele, interpretado por Kit Connor, mas as coisas não são tão simples quanto parecem à primeira vista. A amizade dos dois vira algo mais, não assumido a primeira vista por nenhuma das partes, mas esse é o segredo do romance, ele tende a desabrochar de formas surpreendentes.
Quando se fala em seriados LGBTQIA+ em múltiplos serviços de streamings, normalmente o G se destaca em meio a muitos outros personagens cis e héteros. É essa uma das partes mais importantes de Heartstopper, seu compromisso com o arco íris e a diversidade dele, não apenas preso a um de suas letras. No núcleo principal da série temos não apenas os protagonistas, um deles gay e o outro bissexual, temos personagens lésbicas, assexuais e trans. Mais importante de tudo, os enredos são muito mais tridimensionais do que apena se aceitar ou se assumir, a estes jovens são dadas almas, vidas e nuances. Personagens cis e héteros são basicamente ou familiares, ou antagonistas ou fontes de humor para o seriado e isso funciona muito bem.
Tendo uma visão leve e otimista, a série consegue abordar assuntos importantes como o preconceito sofrido por pessoas LGBTQIA+ até os dias de hoje numa sociedade. Mais particularmente, a série encara seus personagens preconceituosos e aponta como seus comentários homofóbicos, lesbofóbicos e transfóbicos são reflexos dos seus próprios preconceitos. Durante a série boa parte dos personagens fala o quão suas atitudes ou suas falas não são homofóbicas, após dizerem ou fazerem algo extremamente homofóbico. É assim como a série coloca sob os holofotes como pessoas cis e héteros são sim disseminadoras de preconceitos para com pessoas LGBTQIA+, especialmente quando negam seu lugar nesse espaço de preconceito.
Se falando em adaptação vou usar de exemplo o que houve com a série de livro Percy Jackson e os Olimpianos, escrita por Rick Riordan e adaptada pela FOX. Os filmes se distanciam em milhares de quesitos de seus livros, não apenas a nível de adaptação mas a nível de fidelidade. Quando se cria uma obra, ela tem a sua essência, essa mesma essência é algo inerente à obra e quebrando-a você termina por quebrar a obra como um todo. Por isso é tão revigorante ter Alice Oseman responsável pela série, a adaptação de uma obra sua. Seus personagens e suas criações puderam ser adaptados para as telinhas pelas mãos de sua própria criadora. Nem em todos os casos isso pode funcionar, mas Oseman conseguiu criar algo belo em cima de sua própria criação. Talvez por isso em seu primeiro final de semana disponível o seriado tenha atingido o Top 10 da Netflix em mais de 40 países ao redor do mundo.
Em uma das primeiras interações temos o grupo de amigos principais falando sobre a transferência de escola de sua amiga, Elle (interpretada pela talentosa Yasmin Finney), que agora vai para a escola Higgs para garotas. Logo somos apresentados à personagem, sabemos sobre ela ser trans e ter passado por maus bocados na escola dos meninos, onde até os professores eram extremamente transfóbicos com ela, se recusando a respeitar sequer seu nome. É bem importante como o arco da personagem não ser sobre o seu sofrimento por ser trans em uma sociedade transfóbica, isso é um percalço em meio a vida de uma jovem lidando com uma nova escola, fazendo novas amizades, mantendo amizades antigas.
A química entre o elenco escolhido é extremamente importante para fazer da obra uma das mais aguardadas estreias do ano, como cada personagem funciona bem quando interagindo com os outros nas mais complexas relações. É como se os personagens do web comic tivessem pulado para fora da tela e ganhado vida de fato, como se estivessem ali para nos dar uma versão mais fresca e original do trabalho de Alice Oseman. Mais pode ser aguardado deste universo tão complexo da autora, não apenas limitado ao romance de Charlie e Nick em Heartstopper. Claro, se a Netflix não optar por mais uma vez dar um tiro no pé e cancelar mais uma série com muito potencial.
Por muito tempo o audiovisual, em suas mais diversas formas, negou a personagens LGBTQIA+ histórias simplesmente felizes, e é tão bom ver uma obra como Heartstopper ser adaptada. Me faz desejar ter tido como referência de narrativa LGBTQIA+ essa criação, ter tido a oportunidade de ver pessoas LGBTQIA+ passarem por seus obstáculos e mesmo assim alcançarem a felicidade, encontrarem um romance tão especial quanto os dos protagonistas de Heartstopper. Não se trata de não ter problemas, não haver preconceitos ou dificuldades, se trata de mostrar como essas coisas não resumem pessoas LGBTQIA+ ou suas histórias. Uma história tão leve de se assistir sobre dois adolescentes vivendo um romance é muito bem-vinda, especialmente para um grupo ao qual histórias do tipo foram negadas por tanto tempo.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.