Um Jóquei Cearense Na Coreia – Gibão vestido na alma

Um brasileiro longe de sua terra, na tentativa de ganhar a vida em outro país. Essa é a realidade de inúmeras pessoas, principalmente se tratando do cearense, que está em todo canto do mundo e não falo somente por seu deslocamento pessoal. Sua construção e identidade vem dos mais variados recantos do planeta. Nessa relação cearense/mundo que o diretor também cearense Guto Parente (Inferninho, Clube de Canibais), habituado a compartilhar direções, se aproxima do protagonista do documentário e soma com a direção coreana de Mi-Kyung Oh o desafio de apresentar a história de Antônio Davielson, um cearense que reside na Coreia do Sul com esposa e filha. As dificuldades do ofício de jóquei, as relações dele e sua família com a sociedade sul-coreana e o recorte da saudade de sua terra-natal.

Dentro da linguagem, a proposta de Parente & Mi-Kyung é vestir seu filme com elementos comuns desses dois países que ultrapassem a notória narrativa que toma forma quando a história é contada. Destaque para o curioso resultado da trilha sonora, harmonizando melodias aos sons que lembram percussões de janggus & triângulos e geomungos & violas, que estranhamente acertam algo bastante familiar, que mais permanece no meio do caminho das duas nações: a música moura, esta por sinal uma das mais influentes no cancioneiro nordestino (como o aboio) e digna de um estudo músico-etnológico a parte. A inserção de Davielson entre os demais corredores antes e depois das corridas desperta uma curiosidade latente pelo homem já habituado com sua rotina, fazendo os anos de residência na terra dos dioramas parecer ser feita há mais tempo. Em paralela via, sua postura, seu pensamento muitas vezes sertanejo e suas práticas mostram um belo contraste com todo ambiente. Davielson porta seus costumes porque cearenses como ele são agentes natos genuínos da sua cultura. Ao comunicar-se em inglês com seus colegas de profissão, expressa com potência nosso belo sotaque costa-norte. A maneira que se preocupa com o sustento familiar ao encarar cada corrida com a importância do ciclo do gado de seus antepassados.

Contudo, a característica que mais chama atenção para este que vos escreve seja uma até discreta, mas não menos valiosa: sua relação com o animal.

O equino é a extensão de seu cavaleiro, e se existe uma figura que mais tem sabedoria nisso quiçá no mundo, esse alguém é o vaqueiro. São alguns poucos momentos que Davielson fala sobre suas montarias e nelas carregam um saber profundo que seu poder de síntese reafirma longe de encostar numa dedutível timidez. A identificação da trotada, manuseio diante do cansaço do animal, resistir a pressão e balancear a adrenalina. Essa leitura é refletida também em seu treinamento e linguagem corporal, fruto de um aperfeiçoamento ecológico hominis pecora. E no seu rápido retorno ao Ceará é o momento crucial para finalizarmos e entendermos que unicamente poderia partir de um vaqueiro nordestino e seu contato natural e pueril com cavalos. O folclorista Câmara Cascudo em seu livro “Viajando o Sertão” (1934), escreve que, assim como todos os seus antecessores, o senso decorativo e o amor sensorial diante da natureza não pertencem ao sertanejo, pois seu encanto é por conta do seu trabalho e interação realizado. O orgulho em vencer com rédeas nas mãos vestindo a cota-gibão que o protege das farpas da caatinga e os espinhos que ferem a alma. É nesse ofício de rapaz da vaca, pastor de rês, figura principal do ciclo pastoril que um dia já fagulhou a unificação de ricos e pobres, libertos e escravos, o êxtase ante a natureza, ante a honra.

São nesses precisos instantes que o documentário faz bela alusão ao modo de vida de Davielson. Instantes precisos de contemplação da cancela à chegada como se fosse na sua mocidade herdada na busca de rês raçada ou touro bravo dentro da mata.

Por vez, é pelas lentes de Guto ao ter seu personagem em terras cearenses que enxergamos que até quando levamos o Ceará consigo, temos saudade quando não estamos. A ligação pelo simples se reconecta mais forte.

Mas são as palavras do cordelista piripiriense José Edimar que mais chegam perto de expressar a indumentária na alma de couro que nem a Coreia conseguiu separar em Um Jóquei Cearense na Coreia:

“Fui um vaqueiro valente

Correndo no tabuleiro

Por cima de pedra e paus

Unha de gato e ficheiro

Honrei minha profissão

Dei prova de bom vaqueiro

Sinto hoje no coração

A mais tremenda saudade

Vive ala enchendo meu peito

Tirando a Felicidade

Tenho insônia quando durmo

Sonho com a mocidade”

[Um Jóquei Cearense na Coreia foi exibido no É Tudo Verdade 2022: 27º Festival Internacional de Documentários. O festival foi até 10 de Abril, online e gratuito]


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