O filósofo e semiólogo Umberto Eco dizia que o livro somente ganhava utilidade se fosse interpretado, e que grandes clássicos são aqueles que a cada leitura consegue abrir uma nova possibilidade de interpretação.
No cinema não é diferente. Principalmente quando torna-se latente as interpretações durante o decorrer do filme e suas transformações – ou descobertas – até a chegada dos créditos.
Foi assim com Yellow Cat (Sary Mysyq, 2020), filme do cazaque Adhilkan Yerzhanov, sobre a história do ex-presidiário Kermek (Azamat Nigmatov) que, junto da sua parceira Eva (Kamila Nugmanova), segue em busca de realizar um sonho de construir um cinema nas montanhas do Cazaquistão, enquanto estão sendo perseguidos por mafiosos.
Já nos primeiro minutos, Yellow Cat declara o estilo de humor que acompanhará a história toda. Totalmente contrário ao stand-ups estadunidenses, preza-se aqui o silêncio para absorver os atos carregados de proposital pouca noção. A pausa é estratégica para que o filme e o espectador juntos tenham o mesmo tempo de comicidade. Os planos abertos, sempre colocando os protagonistas, ora alheio da vastidão cazaquistanesa, ora deslocados dentro de um universo que tenta engolir seus delírios, chega a ser até visualmente cansativo, como se a obra fosse a junção de várias esquetes. Mas a façanha de Yerzhanov é entregar uma tragicomédia disfarçada de comédia, sem o filme precisar revirar-se. Lembro do roteirista Luiz Bolognesi que se debruçou durante dez anos para entregar a versão final do roteiro de Bingo: O Rei das Manhãs (2017) e afirmou que a tragicomédia é o gênero mais difícil de se escrever, pois o limiar do riso e do lamento não está na expressão da face, mas no afrouxar e apertar do coração.
No avanço do filme, a impressão que temos sobre o protagonista Kermek não é de transformação, mas que em algum momento o filme desvelou um tipo de personagem que não tínhamos enxergado como ele merecia. Sua paixão pelo Alain Delon em O Samurai não é diferente das nossas paixões, que infelizmente abandonamos diante dos “gângsteres” que cercam e minam nossos desejos.
O bobo não é bobagem. Ele serve justamente para oferecer uma gangorra que balança da inocência do delírio. É no bobo onde reside a qualidade da inocência quando insistem em obstruir nossos devaneios. É no bobo que a virtude se nomeia naqueles que não perdem o delírio de prosseguir.
Então que Yellow Cat abre a cortina de um filme que sempre esteve ali: um filme sobre cinema.
Um filme sobre o bobo sentimento delirante que é sonhar cinema: doce como o pirulito de uma criança e triste quando o tomam.
(Yellow Cat está em exibição na plataforma MUBI)
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Passolargo é um nordestino armorial. Escritor, produtor de conteúdo, anticoach fuleragem profissional. É o rei dos memes, não pode ver uma rede que já quer deitar, um brega funk que já quer dançar e é o maior fã de Harry Potter que você vai conhecer (embora ele não assuma). O cinéfilo local mais arengueiro da internet.