Carro Rei – Entrega chegando na banguela

Selecionado para o Festival de Cinema de Roterdã, Carro Rei (2021) se passa em Caruaru-PE e narra a história de Uno, um rapaz que consegue se comunicar com carros. Ele e seu tio transformam o táxi de estimação da família no Carro-Rei, com capacidade de falar e ter sentimentos.

Visualmente, os elementos do filme são de um equilíbrio maravilhoso: leds, retas, ferro, cor, são empregados cada qual num sentido estético que colabora para dar o tom da narrativa, esta que segue uma forma até clássica. O protagonista tem um conflito, se distancia, retorna e precisa estar desatado dos pais para viver a aventura. Nela reencontramos seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) o brilhante mecânico gênio que serve de mentor para a demanda.

O filme, assinado por Renata Pinheiro, tem a proposta de tocar nos temas como Velho vs. Novo ou encostar em algo mais profundo, como o conceito de Homem-Máquina tal qual o ensaio de mesmo nome pelo médico francês materialista Julien Offray de La Metrrie (1709-1751), onde defendia – ou melhor, refletia – que o homem era uma máquina sob todos os pontos de vista. A alma é um respingo suscetível ao corpo, e não o inverso. Essa dualidade é um conflito constante nos momentos que Carro-Rei tenta entender sobre os sentimentos empossados por nós homens. A sua animosidade por encontrar regras dos homens que impõe somem a circulação de carros até 15 anos vem de onde? Não existe um Deus Automobilístico para clamar e nenhuma alma a rogar por fé a não ser o ronco do motor feito a grito de freios e escapes.

A mesma pergunta é feita por Uno para sua condição: “Será que estamos nos transformando em máquinas?” Como se as nossas almas, tal qual falam Aristóteles e Descartes, fossem dilaceradas ou colocadas a prova que nunca existiram com a integração dependente do homem com os maquinários que o cercam.

Se o corpo é uma organização que segue regras tal qual o funcionamento de um veículo, o fruto de suas manifestações estariam essencialmente ligadas a ela: seus anseios, revoltas, desejos, glórias. Ou não, e sim teríamos uma alma latente acima – e comum – aos seres expressivos onde tais emoções são tentativas de desertar das terras devastadas dentro do eu.

Esses questionamentos de redução e ampliação da alma estão lá em Carro Rei. Mas a execução das ideias são muitas vezes didáticas demais, não oferecendo a capacidade de reflexão que o espectador merece. Diálogos com a força de um leite tirado da pedra vindos de personagens estruturados nos moldes de narrativas clássicas transforma quase tudo em caricatura de si. Infantil às vezes (uma fraqueza na proposta de ser um filme para adultos). Falta gasolina nos conflitos que favorecem a iniciação do protagonista ao mundo do Homem-Máquina. Estes que exigem um preparo, são apressados. A impressão é que temos um motor que bebe demais e, mesmo sabendo para onde quer ir, não se importa com os buracos e lombadas pelo caminho.

Assim chega Carro-Rei onde quer chegar. Porém, na banguela. Não por pouco de combustível, mesmo com gasolina a R$ 6,12, mas por problemas no motor.

(Carro-Rei foi exibido no 49º Festival de Cinema de Gramado através do Canal Brasil, onde foi o grande vencedor do Prêmio de Melhor Filme)


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