Liga da Justiça de Zack Snyder – O bom, o ruim e o fan service

Capítulo I – A Trajetória

Zack Snyder é responsável pelo nascimento do atual Universo Expandido da DC nos cinemas, tanto para o bem quanto para o mal. Foi através de seus filmes O Homem de Aço (Man of Steel, 2013) e Batman V Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, 2016) que o universo da DC teve um parto, mesmo que difícil, nos cinemas. Claro, o desenvolvimento dos universos teve menos influência de Snyder, especialmente com recentes filmes como Shazam! (2019), Aves de Rapina (Birds of Prey, 2020) e o vindouro O Esquadrão Suicida (The Suicide Squad, 2021). 

A ideia da Liga da Justiça foi apresentada ao longo do filme de Snyder, Batman V Superman, que, em sua época, foi alvo de inúmeras críticas, em especial devido a uma cena semelhante ao trote da Betty. O filme rendeu momentos memoráveis, em especial a introdução da Mulher Maravilha interpretada por Gal Gadot e sua marcante trilha sonora. Agora, o resto da Trindade da DC não foi muito bem recebido pela audiência, seja pela falta de humor e otimismo do Superman vivido por Henry Cavill ou pela brutalidade do Batman interpretado por Ben Affleck

É indispensável falar sobre uma visão mais única de Snyder, não apenas sobre seus filmes adaptando quadrinhos, mas sobre os filmes em geral, isso é um conceito frequentemente criticado. Impossível não concordar sobre os exageros de referências bíblicas ou a falta de cor e as vezes iluminação em algumas obras do diretor, mas a maior razão da visão de Snyder sobre os heróis da DC receber crítica é pela sua estética diferente sobre quadrinhos e suas adaptações cinematográficas. 

Nunca o diretor mirou em adaptar seu Universo como a Marvel vinha fazendo em seus filmes e criando seu Universo Cinematográfico. Houve um importante antagonista na trajetória da visão de Snyder, esse antagonista foi a própria Warner. Não apenas no filme de Snyder, mas em outros, a responsável por cortes em certas narrativas e falta de respeito pela visão do diretor do filme foi a própria Warner. Se é para falar sobre Marvel e DC é indispensável notar como a Disney abraça mais a criatividade de Kevin Feige enquanto a Warner tentou ao máximo podar a visão de Snyder. 

Sob a direção de Snyder, o filme foi gravado com a equipe e a visão do diretor, e já com alguns cortes em nível de roteiro por parte de executivos da Warner. Bem, as gravações seguiram até o momento onde executivos da Warner decidiram mudar totalmente a visão de Snyder. Houve um certo embate, mas isso aconteceu na mesma época em que Snyder perdeu sua filha, Autumn, e não haviam condições psicológicas para o mesmo ter uma queda de braço com uma empresa. Snyder se afastou do filme e a Warner decidiu fazer uma Liga da Justiça completamente diferente. 

E isso resultou no filme da Liga da Justiça lançado em 2017, com a direção de Joss Wheadon, que já havia sido dispensado de projetos da Marvel após a bagunça feira em Vingadores: Era de Ultron (Avengers: Age of Ultron, 2015). No final, o filme terminou sendo um Frankenstein sem identidade própria, com piadas repetidas, conceitos não explorados e demasiados planos na bunda da única protagonista feminina do filme. Usando pouco da obra já gravada por Snyder, considerada não rentável pelos executivos da Warner, a obra com Wheadon não rendeu uma boa bilheteria e ainda acarretou muitos problemas em seus bastidores.

Anos depois, após muita insistência de uma fã base do Snyder e a frequentemente levantada hashtag #ReleaseTheSnyderCut (#LiberemAVersaoDoSnyder) foi finalmente lançado o filme pensado pelo diretor anos atrás. Numa exibição online feita pelo diretor de Homem de Aço durante a pandemia de COVID-19, foi anunciado que o Snyder’s Cut seria liberado pelo HBO Max e o diretor teria um orçamento extra para completar a sua obra  No dia 18 de Março os fãs puderam finalmente assistir à obra realizada por Zack Snyder sobre sua visão da equipe de heróis, a Liga da Justiça de Zack Snyder (Zack Snyder’s Justice League, 2021).


Capítulo II – A Nova Esperança 

Evitando ao máximo comparações (não posso prometer conseguir evitar ao longo de todo o texto), é interessante ver como a abertura da obra de Snyder se conecta diretamente com o filme antecessor (BvS). Isso não é diferente de como o filme anterior se conecta com Homem de Aço mostrando as consequências da luta do Superman com Zod (Michael Shannon). A forma como Snyder trabalha suas obras como uma trilogia é evidente ao se observar esse detalhe sobre os primeiros atos de seus filmes.

Logo vemos o efeito da morte do Superman nas Caixas Maternas e como isso ecoa na vinda do Lobo do Estepe (voz de Ciarán Hinds) para a Terra e desencadeia a aventura da Liga. Bem, ao menos do que virá a ser a Liga pois Bruce Wayne continua sua busca pelos meta-humanos mostrados ao final de Batman V Superman. O primeiro personagem recrutado é o Aquaman, Arthur Curry (Jason Mamoa) e a interação dos dois não toma o melhor dos rumos. Dessa vez, diferente do filme visto em 2017, a reunião dos dois é finalizada com uma marcante melodia entoada pelo povo ajudado pelo Rei dos Oceanos. 

Uma das maiores diferenças do filme, a nível técnico, é a personalidade das melodias do filme. É inegável reconhecer o fato de Snyder possuir uma personalidade quando se leva em consideração sua forma de contar histórias, visualmente e sonoramente. As músicas presentes na obra de Snyder trazem uma nova identidade para a história, mesmo quando há um certo abuso da repetição do uso de algumas trilhas. Ao longo do filme somos mais imersos pela presença de uma trilha sonora única, nos trazida para ter uma experiência também única.

Como começo de história, a primeira parte da obra (dividida em seis, para quem não deseja assistir em formato de filme em 4 horas) acaba sendo mais lenta e pode até ser um pouco repetitiva, mas rende uma ótima sequência em Themyscira. A ilha das Amazonas foi extremamente mal utilizada no longa visto em 2017, para completar tivemos várias piadas machistas e má representação de suas personagens. Já na versão de Snyder pudemos ver as Amazonas brilharem como guerreiras e ser uma ótima primeira barreira entre o antagonista do filme e seu objetivo. Para quem adorou as cenas de ação com as Amazonas no primeiro filme da Mulher Maravilha, foi possível matar a saudade e deixar mais ansiedade para ver as personagens no futuro.

Sendo o cerne do longa, todo o enredo sobre as Caixas Maternas pode ser melhor aprofundado e também desenvolvido ao longo do filme. Em especial, a presença do vilão Lobo Da Estepe se torna mais orgânica e menos semelhante a um vilão pastelão com frases de efeito forçadas. Ao longo das seis partes, o Lobo da Estepe se sustenta como um antagonista principal, mesmo estando servindo a um ser mais poderoso. Há muito da cultura de Apokolips (o planeta tanto do Lobo da Estepe quanto do ser a quem ele serve), mas deixarei para depois falar um pouco mais sobre esse mestre a quem o Lobo da Estepe serve, pois merecidamente o conceito de Apokolips é bem melhor utilizado ao longo do filme, até com a introdução de outros personagens relacionados ao planeta nos quadrinhos. 

Toda a dinâmica de equipe apresentada ao longo do filme se difere de outros filmes de equipe, especialmente os recentes de quadrinhos. O mundo está em risco, em grande risco, e os protagonistas não podem perder tempo com brigas bobas e lutas entre si. Mesmo em momentos de discordância, não temos uma Liga da Justiça semelhante aos Vingadores da Marvel. Não é sobre falar sobre uma ser melhor do que a outra, mas ressaltando a forma como ambas as equipes têm essências bem diferentes entre si. A forma como Snyder adapta essa equipe de Titãs, aqui, mesmo em sua introdução, se destaca por toda a sua particularidade. É importante lembrar sobre como a equipe é formada basicamente por deuses, mesmo com seus elementos humanizados, e Zack captura muito bem a essência disso. 


Capítulo III – Merecidos Desenvolvimentos

Um enredo planejado para ter quatro horas sendo cortado por apenas duas, obviamente significa ter de cortar algumas coisas. Mas aqui não falamos apenas dos cortes de cenas e sim como determinados personagens foram totalmente mudados para a versão cinematográfica de Liga da Justiça. Um deles foi o jovem Barry Allen, (Ezra Miller), como um inteligente e poderoso velocista. 

Em ambas as versões do filme, Miller é um dos mais jovens da equipe e isso o torna o mais imaturo e menos experiente. Mesmo assim não é um motivo para apagar a inteligência do personagem, que virá a ser um perito criminal para a polícia de sua cidade e conhecedor do potencial dos seus poderes como velocista. Não apenas o comparando com o Flash do filme de 2017, mas fazendo uma breve relação com o personagem da série da CW e interpretado por Grant Gustin há uma óbvia diferença entre os três Barry Allens. 

Na versão final do filme o personagem ganha uma perfeita harmonia entre um jovem não tão maduro, mas também um super poderoso velocista e um inteligente cientista. Diferente da obra seriada, esse Barry Allen já demonstra um maior conhecimento e controle de suas habilidades, e a cena final, onde o herói é o maior responsável por salvar toda a equipe de uma forma surpreendente e criativa. As sementes plantadas ao longo do filme são bem mais claras sobre como seus poderes funcionam e ele não parece só um jovem virgem como na versão exibida nos cinemas.

Além de tudo é uma vergonha como a mais grandiosa cena envolvendo o Flash no filme foi cortada e substituída por uma piada patética, mas errar a mão nas piadas é muito a vibe do responsável final pela versão cinematográfica. Houve um maior aproveitamento e aprofundamento dos personagens da equipe no geral, mas é interessante notar a tridimensionalidade dada por Snyder para o personagem de Miller. O melhor é como o filme trabalha muito um personagem para a audiência desejar vê-lo em seu filme solo, algo que na versão dos cinemas não funciona muito bem.

Deixando o melhor para o final, o Ciborgue de Ray Fisher ganha toda uma nova roupagem e um novo enredo na versão de Snyder. Lembrando não apenas que o personagem tinha um filme marcado no calendário da Warner quando o filme foi filmado, mas também o quanto Fisher se arriscou, não apenas por defender o Snyder’s Cut, mas também por expor atitudes abusivas no set por parte do diretor substituto de Snyder escolhido pela Warner

Victor Stone ganha mais cenas e um maior desenvolvimento, sendo tratado não como um Homem de Ferro, mas sim um verdadeiro deus da tecnologia. A forma como o filme trabalha os poderes de comunicação de Ciborgue com a tecnologia é uma coisa extremamente agradável visualmente e narrativamente de se assistir. Sua história e relação com seus pais ganha um novo foco e podemos ver mais como a família é uma grande parte da motivação de Stone ao longo do filme. Sua relação com sua mãe, interpretada por Karen Bryson, é uma experiência agridoce de se assistir considerando os rumos da origem do personagem. 

Após assistir a versão de Snyder de Liga da Justiça é meio claro uma presença extremamente forte do racismo quando se trata dos cortes. Isso não apenas por como o personagem de Ray Fisher, literalmente a alma e o coração do filme de acordo com a obra final e palavras anteriores de Snyder, mas também pelo corte de duas mulheres negras da versão cinematográfica do filme. Nem Iris West, interpretada por Kiersey Clemons, quando Elionore Stone, previamente citada como a mãe do Ciborgue, foram cortadas. Isso não é tudo, dois personagens interpretados por atores não brancos também tiveram todas as participações cortadas (mesmo um deles não estando presente na versão gravada por Snyder antes da pandemia, apenas em teoria).

A versão nos trazida recentemente não é apenas uma versão maior e com mais cenas em câmera lenta, é uma obra capaz de desenvolver melhor seus protagonistas igualmente. Um dos maiores erros da versão anterior é como Bruce se torna o foco do filme, junto de piadas ruins e redução de todos os outros personagens a estereótipos. Na versão de Snyder, a Mulher Maravilha é uma forte guerreira, Aquaman não é só mais um macho bêbado, o Flash não é um jovem virgem caindo no peito de uma mulher e o Ciborgue é muito mais do que piadas e tecnologia. O filme trouxe o desenvolvimento necessário para estes personagens, sendo capaz de envolver uma audiência melhor pela sua história e seus personagens.

Liga da Justiça de Zack Snyder não é um Vingadores. Isso não é sobre falar se é melhor ou não, mas sobre reconhecer como as narrativas dos filmes de equipe são extremamente diferentes e únicas em si. Após anos da fórmula Marvel, seria interessante termos outra opção para narrativas de super heróis. 


Epílogo – O que Viria Aí

Agora, é importante todos nós lembrarmos que havia muitos planos para um Universo Estendido da DC nos cinemas antes da demissão de Snyder. Não apenas sequências de Liga da Justiça, mas uma grande quantidade de filmes solos, e o corte de Snyder do filme nos mostra as muitas portas para estas obras que provavelmente não verão a luz do dia. 

Um gancho totalmente direto e confirmado da obra está em uma das cenas do epílogo, onde temos Lex Luthor (com Jesse Eisenberg retornando para o papel) e o Exterminador (Joe Manganiello) conversando sobre o Batman. Bem, a idealização inicial era contar a história da relação entre o Exterminador e o Batman no filme solo do Batman planejado para o lançamento em 2021, esse filme terminou não sendo feito devido a diferenças criativas e, pela segunda vez em menos de dez anos, o ator do Batman foi reescalado.

O gancho para a busca de Darkseid (Rey Porter) era exatamente para as sequências de Liga da Justiça, que lidariam com a busca e conquista do Novo Deus da Equação Anti Vida. Além de tudo, as sequências teriam a presença da Liga da Injustiça, liderada por Lex Luthor com a participação de vilões introduzidos nos filmes solo dos membros da Liga (Charada introduzido no filme no Batman previamente citado, Capitão Frio introduzido no filme do Flash, Arraia Negra e Orm ambos introduzidos no filme do Aquaman e a vilã Doutora Veneno interpretada por Elena Anaya no primeiro filme da Mulher Maravilha). O interessante disso é como os diretores da DC seguiram com o planejado até onde puderam, considerando os vilões introduzidos no filme de James Wan. A própria Patty Jenkins falou sobre como nenhum diretor da DC leva em consideração a versão de Wheadon como canônica. 

Houveram demais sementes plantadas dentro do filme do Snyder, sementes essas que não serão capazes de germinar e ver a luz do sol, mas as minhas três favoritas são as narrativas de personagens novos e uma aguardada jornada para Diana. No final do filme vemos Diana olhando para o horizonte, decidida a encontrar Themyscira, pois nas sequências a mesma retornaria ao seu lar e se tornaria rainha antes de muitas desgraças acontecerem. Agora, os outros dois personagens plantados no Snyder Cut que eu gostaria de ver o desenvolvimento é o Caçador de Marte (Harry Lennix), uma das maiores razões de eu ter desejado ver a versão do Snyder. Em particular sabia que o mesmo não seria mais aprofundado, mas sua presença para ele me faz compreender melhor o ‘Unite the Seven’ da primeira imagem do Aquaman anos atrás e eu também precisava ver uma versão mais decente do personagem que a vista na série Supergirl (2015 – 2021). 

O Eléktron é um herói especialista em nanotecnologia, pode ser visto tanto em Arrow (2012 – 2020) e Legends of Tomorrow (2016 -) da CW e também na animação Justiça Jovem (Young Justice, 2010 -). A presença do ator Zheng Kai foi totalmente cortada da versão cinematográfica, pois o personagem não fazia diferença para a Warner. Bem, recentemente o diretor Zack Snyder revelou o planejamento e a vontade de ter um filme solo do herói na época, com um elenco todo chinês. A versão interpretada por Zheng é a de Ryan Choi, que apareceu no recente crossover da DC interpretado por Osric Chau. No longa de Snyder, o cientista se torna chefe do laboratório STAR, plantando sementes para o mesmo se tornar o Eléktron no futuro. 

Mais uma vez deixando para o final uma dos pontos mais altos do filme, a interpretação de Ray Fisher como Ciborgue, aliada a todo o potencial de seus poderes mencionado e também explorado no filme, deixou uma enorme vontade de ver uma obra onde o herói é o protagonista. Em particular não possuía muitas expectativas verdadeiras para o personagem na obra de Zack Snyder, mas ele me surpreendeu das formas mais positivas possíveis. É uma vergonha a Warner ter perdido o potencial narrativo de ter um personagem como o Ciborgue de Ray Fisher em seu universo. 

A obra de Snyder está disponível em diversos serviços de streaming aqui no Brasil enquanto não chega o HBO Max para nós.


VEJA TAMBÉM

Mulher-Maravilha 1984 – Tudo que um filme de super-herói deve ser

Liga da Justiça – Um retorno necessário

Shazam! – Diga seu nome