Estamos vivendo um ano turbulento, e com ele várias tragédias vem assolando a população mundial ao extremo, principalmente por causa da pandemia. O Brasil vive seu pequeno inferno pessoal, principalmente por causa do governo atual e negacionista que destrói e distorce tudo pelo seu caminho. É também um momento de despertar, principalmente para a população negra brasileira. Talvez tenhamos vivido uma das semanas mais turbulentas da nossa História em termos raciais, não só por causa do mês da consciência negra, mas porque o racismo, racismo estrutural e o preconceito estão cada vez mais explícitos e evidentes, veja o caso tenebroso de João Alberto, mais uma vida preta que se vai de forma brutal e covarde. É por essas e outras que programas como Falas Negras (2020) são cada vez mais necessários, para lembrarmos que a luta dos movimentos negros deve ser algo permanente e que precisa envolver toda a sociedade.
Confesso que quando o projeto foi anunciado, olhei com desconfiança, principalmente por ter uma pessoa branca escrevendo o roteiro. Manuela Dias é talentosa, eu sou um dos primeiros a reconhecer isso, a série Justiça (2016) está aí para provar seu talento como roteirista e contadora de histórias. Só que Manuela não é negra, então como poderia escrever sobre algo que ela não compreende e sobre um assunto tão delicado? Mas ao assistir Falas Negras e compreender melhor a intenção do projeto, vejo que a escritora serviu como um canal necessário e bem vindo para que tudo isso tomasse forma, mas sem tomar o protagonismo para si.
Desde a primeira cena mostrada na tela, contando a história de Nzinga Mbandi rainha do reino do Congo e Matamba, interpretada pela atriz angolana Heloísa Jorge, percebemos estar diante de uma obra única, contada em primeira pessoa, com a câmera próxima da atriz ou do ator olhando para a câmera de forma a conversar com seu público e passar a mensagem através das palavras de ídolos negros através de várias épocas diferentes.
O projeto conta com 22 atores interpretando 22 figuras históricas, entre brasileiras e estrangeiras, que foram e são importantes para história do povo negro ao longo de quatro séculos de História, começando em 1626, com Nzinga, até chegar aos dias atuais. A direção desse especial ficou por conta de Lázaro Ramos, que está a cada dia mais a vontade atrás das câmeras. Aqui o ator, agora diretor, se mostra totalmente focado, sensível e preciso em capturar as emoções dos depoimentos com movimentos de câmera intimistas e tomadas estilosas.
Em termos técnicos, Falas Negras é um deleite. Desde a fotografia até o cenário, com uma ambientação que vai desde árvores que remetem as terras africanas (o baobá gigante é impressionante), até adereços modernos que mostram a transição entre os diversos períodos apresentados. Vale citar elogios para toda a equipe técnica por trás, desde a antropóloga que serviu de consultora para o projeto, passando pela assistente de direção e chegando na figurinista, porque fica evidente a dedicação da produção em entregar um produto bem acabado, que realmente causasse impacto na tela.
O especial traz falas importantes de figuras icônicas como Nelson Mandela, Martin Luther King, Angela Davis, Malcolm X, Nina Simone, além de figuras históricas muitas vezes desconhecidas, como a já citada rainha Nzinga Mbandi, o líder haitiano Toussaint Louverture, o escritor e abolicionista brasileiro Luiz Gama, além de figuras atuais como Milton Santos, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros e Marielle Franco.
A narrativa utiliza-se dessas figuras para mostrar a resistência e a constante luta do povo negro durante centenas de anos contra o preconceito, contra o racismo, contra desigualdade. A medida que vamos assistindo, o especial vai enriquecendo nosso conhecimento, nos mostrando pessoas que, apesar das adversidades, tiveram que superar todos os obstáculos impostos por uma sociedade que constantemente tenta oprimi-los e diminui-los. O texto às vezes chega a ser didático até demais, de forma a alcançar o expectador comum, e em determinados seguimentos os depoimentos são um pouco rápidos demais, servindo apenas para dar uma pincelada na história da pessoa retratada. Porém, ainda assim, a obra é eficiente o bastante em atiçar a curiosidade das pessoas que estão assistindo, as levando a pesquisar mais sobre a história dessas importantes figuras negras.
Em Falas Negras, existem dois pontos fortes que se destacam: o primeiro, já citado, é a direção precisa de Lázaro Ramos; a segunda, é o grande elenco composto por pessoas pretas. É impressionante como a narrativa cresce à medida que os depoimentos vão se apresentando na tela, reverberado através de lutas, através de conquistas, através de verdades sobre o racismo e sobre como a sociedade enxergam pessoas negras. Nessa tomada ascendente, vários atores começam a se destacar, não só por se parecerem fisicamente com as figuras retratadas, mas por conseguirem trazer interpretações emocionantes que realmente tocam na alma.
Vale destacar as interpretações de Tatiana Tibúrcio (que também é preparadora de elenco do projeto) como Mirtes Souza, mãe do menino Miguel, Silvio Guindane interpretando o pai do menino João Pedro, Ivy Souza como a cantora Nina Simone, Bukassa Kabengele como Nelson Mandela, além de Taís Araújo como Marielle Franco, Babu Santana como Muhammad Ali e Olívia Araújo como Harriet Tubman. Foram interpretações minuciosas, emotivas e que elevaram o texto em depoimentos realmente marcantes. É claro que o resto do elenco merece ser citado, porque o que se vê em tela é uma dedicação sem precedentes que torna Falas Negras algo realmente especial de assistir.
Ainda que tenham selecionado muito bem os depoimentos, senti falta de figuras como Benedita da Silva (Primeira Senadora Negra do Brasil) e Zezé Motta (uma das primeiras protagonistas negras da história da TV), é claro que fica complicado filtrar tantos nomes, mas são figuras importantes que mereciam ser lembradas ganhando seu próprio depoimento aqui, isto também mostra que ainda temos vários nomes que precisam ser conhecidos e lembrados na nossa história.
De uma forma geral, para mim e para muita gente, este especial é basicamente uma porta de entrada, e espero sinceramente que seja só o começo. Acredito que nunca existiu um projeto dessa magnitude, com essa qualidade e com tantos negros envolvidos na frente e atrás das câmeras de forma a contar sua própria história num programa em rede nacional em pleno horário nobre desta forma, e espero que não seja o último. Falas Negras é um projeto que serve de lembrança de que precisamos normalizar a presença negra nos diversos seguimentos da sociedade, então, que as falas de luta proclamadas sirvam de inspiração, que os relatos sobre racismo e preconceito, sirvam de lição, que essas figuras histórias mostrem que vidas negras importam, que vidas pretas importam, que essa luta tem sim que ser de todos e que a precisamos caminhar juntos em busca de uma humanidade mais justa e igual para as futuras gerações.
Observação: Achei importante citar todos os atores envolvidos no projeto, pois merecem todo destaque possível.
– Heloísa Jorge (Nzinga Mbandi), Fabrício Boliveira (Olaudah Equiano), Izak Dahora (Toussaint Louverture), Olívia Araújo (Harriet Tubman), Reinaldo Junior (Mahommah G. Baquaqua), Aline Deluna (Virgínia Leone Bicudo), Flavio Bauraqui (Luiz Gama), Barbara Reis (Rosa Parks), Bukassa Kabengele (Nelson Mandela), Angelo Flávio (James Baldwin), Samuel Melo (Malcolm), Ailton Graça (Milton Santos), Guilherme Silva (Martin Luther King), Ivy Souza (Nina Simone), Mariana Nunes (Lélia Gonzalez), Babu Santana (Muhammad Ali), Naruma Costa (Angela Davis), Valdineia Soriano (Luiza Bairros), Taís Araújo (Marielle Franco), Tatiana Tibúrcio (Mirtes Souza), Silvio Guindane (Neilton Matos Pinto) e Tulanih Pereira (Jovem do Protesto de George Floyd).
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Engenheiro Eletricista de profissão, amante de cinema e séries em tempo integral, escrevendo criticas e resenhas por gosto. Fã de Star Wars, Senhor dos Anéis, Homem Aranha, Pantera Negra e tudo que seja bom envolvendo cultura pop. As vezes positivista demais, isso pode irritar iniciantes os que não o conhecem.