Angola Janga – Quilombo, insurgência e afeto no traço de Marcelo D’Salete

Nos anos 1980 Gilberto Gil cantava que “Existiu um Eldorado negro no Brasil” se referindo ao Quilombo dos Palmares (Inclusive o álbum Quilombo, trilha sonora do filme homônimo de Cacá Diegues, inteiro é lindíssimo, vale a escuta). Lembro de Gil porque nele vive uma das muitas reverberações do que representou, do que representa, Palmares para o Povo negro brasileiro. E porque a cantiga com que começo esse texto tem muito a ver com seu tema: Angola Janga.

Angola Janga: uma história de Palmares (Veneta, 2017), é uma novela gráfica desenhada e roteirizada por Marcelo D’Salete. Conheci o trabalho de Marcelo D’Salete em 2019 pela HQ Cumbe (Veneta, 2014). Na época, lembro de ficar muito impressionado com a beleza do traço e a potência das histórias apresentadas. E aqui esse traço, as sutilezas do preto e branco e as singularidades do estilo do autor dão o tom da linha narrativa. Tanto em Cumbe quanto em Angola Janga as imagens ocupam um lugar tão importante quanto o texto na construção do texto geral. Não há grandes monólogos e por vezes o autor preferiu trazer o texto assim, na forma de imagens, sem falas. O resultado é forte. Muitos dos momentos mais bonitos e importantes não têm falas ou texto verbal. Entre os vários méritos desses trabalhos mais recentes de Salete, o rigor estético, é sem dúvida um dos principais, do material (a história) a edição, tudo é muito bonito.

A importância das imagens, porém, não tira a força do texto. Fruto de onze anos de pesquisa, Angola Janga traça o percurso das décadas finais de existência física do Quilombo dos Palmares. É interessante que a pesquisa sempre figure nos debates de Angola Janga por dois motivos. Primeiro, porque nos ajuda a entender o processo criativo do artista. É claro que toda obra tem um processo e que com as facilidades do digital não é difícil de encontrarmos um making of ou textos sobre o processo de construção de obra x ou y, mas aqui a pesquisa de Marcelo D’Salete aparece quase como parte integrante de sua narrativa. Segundo, percebemos a preocupação de Marelo D’Salete com a história factual que envolve Palmares. Vejam, Angola Janga é uma ficção com os pés bem firmes na produção historiográfica e nas fontes documentais que envolvem a história que ele pretende contar. Os capítulos sempre começam com um trecho de texto ou fonte que nos ajuda a compreender melhor a história como um todo. Ao final do livro ele conta um pouco sobre esse processo, suas escolhas e as liberdades que ele tomou na construção de personagens com base nessa bibliografia. É um trabalho de fôlego e é bonito ver esse esforço ao tratar de um tema que, por um lado, ainda é menos estudado do que deveria, por outro volta e meia surge em livros de qualidade inferior e cheio de imprecisões propositais que tem por objetivo diminuir o tamanho da experiência palmarina. O Quilombo dos Palmares que Angola Janga nos entrega é plural e forte. 

Salete não constrói sua história em um único núcleo, vários personagens são empregados para construir um fluxo narrativo que nos leve a compreender a complexidade dos eventos da guerra de Palmares. Acho ótimo que, por exemplo, Zumbi apareça como peça importante, como deve ser, mas não como elemento fundamental. Outros indivíduos são elencados como Ganga Zumba, Acotirene e Antonio Soares, que tem sua tragédia pessoal como uma das principais chaves para a compreensão do livro. Não é uma HQ sobre Zumbi, mas sobre Palmares. Ao trazer outros indivíduos para a narrativa percebemos a força da sociabilidade dos quilombolas e os seus mecanismos de ação e resistência frente a violência da escravidão e os diversos mecanismos de opressão colonial. Eu, como homem negro, fico muito emocionado em poder ler uma história onde esse sentido de ação seja tão presente. Mais que resistência, os mocambos tinham uma proposta a intervenção no mundo, de ação. Percebemos isso na forma como a trama política é conduzida pelos personagens e na forma como as redes de sociabilidade surgem na história. A guerra contra as forças coloniais é importante para a história, mas também são importantes os toques da ngoma, os acordos diplomáticos entre os mocambos de Angola Janga e os espaços pedagógicos orientados pelos mais velhos. 

A diversidade é um dos nortes da obra. “Olhe bem. A teia pode ser proteção e ataque…uma armadilha perfeita. Do mesmo jeito que mata pode ser casa… Proteção e revide. Em Angola Janga. Isso é o que Ananse, a aranha, ensina pra gente. ” Essa fala, do personagem Tata, é simbólica da relação dos palmarinos com a mata e com as possibilidades oferecidas por ela. Com essa diversidade. Mas tem mais. Como eu dizia, a linha narrativa nos mostra os mecanismos de ação dos quilombolas, as táticas de guerra na mata, ou de guerrilha, foram cruciais para a longa duração de Angola Janga (Salete narra apenas as décadas finais, mas os registros apontam para mais de cem anos de duração do Quilombo dos Palmares). Essa construção foi uma das coisas que achei mais fortes na HQ, perceber a complexidade de ações possíveis contra a violência colonial.

A escolha do título Angola Janga ajuda a marcar a profundidade da pesquisa de Salete, bem como seu acerto nas opções narrativas. Angola Janga, a “ pequena Angola” do idioma quimbundo, era como os quilombolas se referiam ao complexo de mocambos de Palmares. Quando pensamos em Palmares frequentemente imaginamos uma grande cidade unificada, ou mesmo um pequeno reino africano dentro da colônia portuguesa, quando na verdade se trata de um complexo de mocambos, mais ou menos diferentes entre si e com suas próprias organizações internas. O mais importante, Macaco, é onde se passa parte das ações da história, mas outros mocambos são apontados e ocupam lugar importante na narrativa. Essa percepção do plural nos ajuda a quebrar a noção, ainda existente, do Quilombo dos Palmares com uma unidade homogênea. Uma das chaves para a longevidade de Palmares foi justamente sua força variada e as várias formas de ação empregadas na guerra. 

Por fim, penso que Angola Janga seja um trabalho fundamental tanto para a compreensão do Brasil, de suas dinâmicas de violência racial e das possibilidades de subversão, ação e resistência frente a essa violência, como para a formação de um público leitor interessado por História, mesmo não sendo um livro de História. A ficção, em especial para públicos jovens, é uma das primeiras formas de operar e compreender a realidade mesmo de lidar com ela. Palmares foi, junto a Revolução Haitiana, a maior experiência de insurgência negra nas Américas. Poder conhecer mais de seus meandros e refletir sobre suas lições é fundamental para jovens negros e negras que crescem em um país onde a história de sua ancestralidade é, quando não apagada, folclorizada. Nos instiga a cobrar justiça pela memória de Palmares bem como a projetar um país melhor. Finalizo como comecei, lembrando de Gil e celebrando o “Quilombo, que todos tiveram de tombar amando e lutando. Quilombo, que todos nós ainda hoje desejamos tanto. ”


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