RESENHA | Scythe Vol. 1: O Ceifador, de Neal Shusterman – “Primeiro mandamento: Matarás.”

Em um futuro utópico, a humanidade consegue atingir o equilíbrio. A nuvem de informações adquiriu consciência anos atrás e, ao contrário do temor geral de que os computadores iam acabar com a humanidade, essa consciência salvou o meio-ambiente e agora comanda, com imparcialidade e perfeição, o mundo todo. As fronteiras foram transformadas, as prisões desativadas. Não existe fome, não existe pobreza, não existe doença… E também não existe morte.

Por meio das inovações tecnológicas, os humanos não morrem de velhice; as pessoas passam por restauração e voltam a ter a aparência de um jovem adulto. Acidentes de trânsito, desastres naturais, quedas de aviões, nada disso existe mais. E, se acontecer qualquer uma dessas coisas, as pessoas são revividas. Mas deve existir algum tipo de controle populacional, o planeta não aguentaria o crescimento desenfreado, e a consciência artificial também não deixaria que isso acontecesse.

Sendo a única instituição independente de governo nesse mundo, a Ceifa é a organização responsável pela “coleta” de uma porcentagem específica de humanos a fim de manter o equilíbrio do mundo. Os ceifadores são treinados na arte de matar, sabem de cor venenos, facas e formas de coletar usando apenas o próprio corpo. São os seres mais respeitados e também os mais temidos. Eles estão acima da lei, respondendo apenas aos mandamentos da Ceifa. Eles também podem conceder imunidade, mas devem agir sempre com imparcialidade.

Dizem que, para ser um bom ceifador, é preciso odiar o ofício, o ato de coletar. Existem ceifadores bons. Também existem os ruins. E apesar desse mundo ser praticamente perfeito, ainda há brechas e erros. Erros humanos, claro. Eles ainda são corruptíveis, ainda fazem alianças, acordos e política. Ainda existe o ego, a vaidade, a dissimulação… E agora eles são Deuses da Morte certificados.

Em O Ceifador (Companhia das Letras, 2017) acompanhamos dois aprendizes de ceifadores, Citra e Rowan, durante o ano de treinamento que leva para um dos dois ser ordenado, e o outro… executado. O ponto de vista é dividido entre os dois, utilizando alguns outros pov espaçados para fazer apresentação de personagens ou nos dar uma melhor visualização de como o mundo funciona e se divide agora. Os capítulos em si se alternam entre o ponto de vista em primeira pessoa e páginas dos diários de alguns ceifadores.

Esses diários questionam a realidade, a ética do trabalho de um ceifador, explicam como é o mundo, e serve também para mostrar a personalidade de outros ceifadores, o que se passa na mente deles. É assim que a gente percebe que o mundo não é tão perfeito assim. O tédio contínuo e a retirada do medo constante da morte transformou a humanidade em alguma outra coisa. Algo que pode ou não ser um perigo. O futuro dirá.

Eu adoro esse tipo de construção de mundo, que explica aos poucos o funcionamento, que vai adicionando camadas ao mesmo tempo que vai desfazendo a ideia de perfeição. O questionamento moral é um dos pontos mais fortes desse livro. Como alguém pode manter a sanidade, algum nível de compaixão e a humanidade, se o seu trabalho é fazer o contrário disso? Se destruir a vida humana, mesmo que em pouca quantidade em comparação à Era da Mortalidade, é o seu trabalho… O que pode acontecer com você, com a sua alma e a sua essência depois de anos e anos de trabalho?

Outro ponto positivo é as várias reviravoltas. Apesar da monotonia que atinge o resto do mundo, a vida de um aprendiz de ceifador é o total oposto disso. Há tramas políticas, há o medo de morrer, assim como o medo de se perder, os perigos de gostar de matar, ou pelo menos a sensação dupla de se sentir bem por ser bom no que faz e se sentir mal por ser bom no que faz.

Entretanto, eu gostaria de ter tido um pouco mais de monotonia no começo do livro, para o choque ser maior da mudança abrupta de estilo de vida dos personagens principais. Existe também um romance, mas ele não foi muito bem construído – a monotonia às vezes é boa, podia ter sido um recurso para criar essa tensão emocional. Mas essa é apenas uma camada das personagens, e não atrapalha o ritmo do livro ou a história como um todo.

Esse livro de fantasia YA traz imortalidade, tecnologia, conspiração, intriga, ética, moral e, bem… mortes. Se você se interessa por qualquer um desses assuntos, você vai adorar esse livro. 

O Ceifador é o primeiro livro de uma trilogia, a qual, inclusive, já teve seus direitos comprados pela Universal para a produção dos filmes. Além disso, em 2017, ele foi escolhido livro de honra do Michael L. Printz Award, o principal prêmio de literatura jovem adulta dos Estados Unidos.


VEJA TAMBÉM

RESENHA | Sol da Meia-Noite, de Stephenie Meyer – Inesperado em mais de um sentido

RESENHA | A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler