Life is Strange – Nossas escolhas, nossas histórias

Nostalgia: substantivo feminino; 1. melancolia profunda causada pelo afastamento da terra natal; 2. saudades de algo, de um estado, de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar ao passado; “n. da vida adolescente”; 3. estado melancólico devido a aspirações, desejos nunca realizados; 4. estado de tristeza sem causa aparente.

Em 2015, o old school estava na moda. Com o lançamento de um novo filme de Star Wars – depois de 10 anos -, um novo filme de Jurassic Park – depois de 14 anos -, e um novo filme de Mad Max – depois de 30 anos -, a cultura geek, que já vinha passando por uma fase meio vintage desde 2013, entrou num momento de nostalgia absoluta.

Dentro do universo gamer, essa onda retrô assumiu a forma de um festival de jogos indie em estilo arcade e metroidvania, uma série de remasterizações, remakes, reboots e ports de jogos mais antigos, continuações de séries supostamente finalizadas e o repentino apego ao bom e velho visual 8-bit. E foi no auge dos discursos sobre como jogos modernos são muito simples, muito fáceis, repetitivos ou entediantes, e “difícil mesmo era jogar Contra” ou “bom mesmo era no tempo do [insira aqui o console 16-bit de sua preferência]”, que surgiu Life is Strange (2015).

Considerado um jogo indie por ser de relativamente baixo orçamento e ter sido financiado praticamente por crowdfunding, Life is Strange é uma aventura gráfica orientada por escolhas, focada principalmente no desenvolvimento da narrativa e dos personagens. Dividido em cinco episódios lançados ao longo de dez meses, o jogo tem um visual menos realista e mais artístico, estilizado para evocar a sensação de que a história se passa dentro de uma fotografia ou um filme antigo; a jogabilidade é bem básica, e os objetivos do jogo, apesar de um pouco vagos em termos de finalidade, são de uma execução direta e fácil.

Não exatamente aquilo que se esperava de um jogo indie na época, Life is Strange foi uma surpresa muito bem vinda: a DontNod, desenvolvedora do jogo, não era exatamente conhecida, a divulgação não prometia nada particularmente inovador ou extraordinário, e mesmo assim era extremamente difícil ver o trailer e não se sentir imediatamente cativado. O jogo é atraente de um jeito amplo e misterioso, começando pela trilha sonora magnífica e passando pela ambientação bucólica, as temáticas sombrias abordadas em cores vibrantes, os personagens que são ao mesmo tempo clichê e não tão clichê assim, e uma história no mínimo intrigante.

Mas vamos por partes.

Sem perder o embalo da onda retrô, Life is Strange aborda a nostalgia por um ângulo temático ao invés de mecânico e visual. Voltando para sua terra natal, Arcadia Bay, depois de anos longe, Max Caulfield – nossa protagonista – é uma menina fora do tempo: com sua câmera Polaroid que parece uma peça de museu, suas gírias estranhas e datadas e seu constante lamento por um passado que não pode recuperar, ela é o ponto central desse redemoinho de saudades, memórias e recordações.

Existe uma ideia de que a cidade e seus vários ambientes estão congelados no tempo, mas é a própria Max que, ao perceber o contraste entre as lembranças de sua infância e a realidade que encontra ao retornar, acaba paralisada por um saudosismo que mina sua confiança e a impede de seguir em frente com a vida. Aqui, a nostalgia tem um tom de medo do futuro. Max tem medo do que vem pela frente, medo de tomar decisões, de fazer escolhas, e esse medo se reflete na fuga dela pro passado: roupas retrô, câmera retrô, filmes retrô. E como se isso não fosse o suficiente, ela descobre que consegue voltar no tempo.

O próprio processo de viagem no tempo é nostálgico: é como rebobinar uma fita VHS, você vê o tempo voltando ao redor dela, pessoas andando pra trás, desfazendo e desdizendo coisas enquanto Max, assim como o jogador, assume o papel de espectadora, o que reflete fortemente a passividade que, inicialmente, é uma das características mais fortes da personagem. Por mais que esse mecanismo seja a ferramenta principal para desenvolver a história, servindo para alterar o resultado de certos eventos no jogo e guiar os personagens através da narrativa, ele também serve para diferenciar Life is Strange de outros jogos que oferecem escolhas para o jogador, podendo ser usado para refazer quase todas as interações no jogo, mesmo os diálogos mais simples.

Na prática, dentro do jogo, existe um espaço limitado de tempo durante o qual é possível refazer suas escolhas. Usando a analogia das fitas, cada ambiente corresponderia a uma fita diferente que você pode rebobinar até o começo, se quiser, mas uma vez que você troca de local, não é mais possível acessar a fita anterior, você só pode rebobinar a fita nova. A verdade é que o controle que o jogador tem sobre os resultados é limitado: é possível visualizar o impacto imediato das decisões tomadas, mas não as consequências a longo prazo, e Max anuncia constantemente sua incerteza em relação a qualquer escolha feita, levando o jogador a duvidar junto com ela do que o futuro pode trazer.

As escolhas de Max não tem impacto apenas nela: Life is Strange conta com uma lista de personagens secundários e de apoio que são direta ou indiretamente afetados pelas ações da nossa protagonista, e apesar de todos eles se encaixarem em arquétipos superutilizados – e já bem datados – da adolescência, o jogo usa moldes humanizados e menos maniqueístas para transformá-los em pessoas reais ou caricaturas hollywoodianas, dependendo inteiramente de como o jogador escolhe desenvolver as interações.

Victoria, por exemplo, é retratada como uma personagem de Garotas Malvadas (Pretty Persuasion, 2005), movida por um senso de superioridade não justificável, e capaz de comportamentos perversos e até criminosos. Essas são características ruins, e se o jogador escolhe antagonizar a personagem por causa delas, ela continua se comportando de forma vilanesca e caricata até o final da história, mas se em vez de conflito, o caminho escolhido for o do diálogo, Victoria revela seus pontos positivos e pode ser convertida em aliada. Essa variedade de comportamentos é válida para quase todos os personagens, dos mais desagradáveis, como David e Frank, aos mais gentis, como Kate e Warren, e a opção de conhecer suas várias faces e montar diferentes cenários dentro da narrativa é um dos maiores charmes do jogo.

Entretanto, a melhor parte de Life is Strange ainda é o enredo. Um jogo que tem uma média de 15h de duração e se passa ao longo de aproximadamente quatro dias parece curto demais para que a história vá de um ponto A – um começo despretensioso em que Max descobre seus poderes – a um ponto B – o aparente final em que um misterioso tornado destrói a cidade – de forma razoável, mas superando todas as expectativas, o salto de um começo estilo slice of life para a descoberta de uma conspiração, para a criação de uma linha de tempo completamente nova, para a grande revelação, para o momento da escolha final é ao mesmo tempo rápido, suave e preciso.

O ritmo se intensifica constante e consistentemente a partir do segundo episódio, e as ramificações das decisões começam a aparecer e ganhar proporções cada vez maiores e mais interessantes. A história que parecia inicialmente simples se transforma em um diálogo sobre uso de drogas, violência doméstica/violência contra mulheres, abuso físico, sexual e mental, depressão, suicídio, abuso de poder, entre outras coisas, e a existência de um “super-poder” se torna de certa forma irrelevante diante de problemas reais que não podem ser resolvidos apenas voltando no tempo. O desespero de Max em controlar os resultados dos acontecimentos se desenrolando ao seu redor se torna cada vez mais ansioso e frenético, evoluindo até o ponto em que ela consegue criar versões alternativas da realidade em que vive, e quando mesmo isso falha, ela precisa decidir se deve de fato usar seus poderes ou simplesmente permitir que as coisas tomem seu rumo.

Numa realidade em que pelo menos 4,5% da população mundial – considerando apenas casos diagnosticados e relatados até o ano passado – vive com algum tipo de ansiedade, essa necessidade de tentar controlar mesmo os resultados que não podem ser controlados, juntamente com a dificuldade de aceitar que algumas coisas simplesmente estão fora do seu controle, são partes da luta real e diária de aproximadamente 350 milhões de pessoas ao redor do mundo, incluindo essa que vos fala. Mesmo sem necessariamente sofrer os efeitos da ansiedade, não existem muitas pessoas no mundo que nunca tenham tido um desejo, mesmo que momentâneo, de voltar no tempo e mudar algum acontecimento, mesmo sem saber se uma escolha diferente teria de fato mudado o resultado final. Esse desejo é provavelmente o motivo pelo qual histórias como Efeito Borboleta (The Butterfly Effect, 2004), Te Amarei Para Sempre (The Time Traveler’s Wife, 2009), Questão de Tempo (About Time, 2013) e Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time, 1980) são tão encantadoras, e é justamente por causa dele que é fácil se sentir envolvido pela narrativa de Life is Strange em um nível pessoal e profundo, mesmo que a realidade de Max seja muito distante da realidade da pessoa segurando o controle. 

No mais, mesmo que os aspectos “científicos” da trama não sejam necessariamente bem explicados, as escolhas narrativas feitas em Life is Strange são ideais para evitar um plot cheio de buracos, balanceando a importância que é dada aos detalhes com a importância que é dada ao desenvolvimento da história, de um jeito que, mesmo que as partes de ficção científica não façam 100% de sentido, as inconsistências não são suficientes para prejudicar a experiência ou diminuir o fascínio pelo jogo.

E claro, não podemos deixar de falar do romance. No meio desse turbilhão de acontecimentos, Life is Strange ainda encontra espaço para retratar de forma sutil e respeitosa não apenas o romance, mas a bissexualidade na adolescência. Ao longo da história, Max tem a opção de desenvolver um relacionamento romântico com sua melhor amiga de infância, Chloe, que é sua companheira de aventuras ao longo do jogo, ou com Warren, um novo amigo da escola com quem tem gostos em comum, e a escolha depende inteiramente de como o jogador escolhe lidar com os diálogos e interações de cada personagem.

No caso de Warren, o romance é desajeitado e um pouco estranho. Inseguro e excessivo em seus comportamentos, o garoto faz o melhor que pode para conseguir a atenção de Max, chegando a ser um pouco insistente demais, e mesmo que ela inicialmente não demonstre muito interesse, fazer escolhas favoráveis para esse romance específico vai melhorando não apenas o modo como eles interagem mais pra frente, mas as notas que ela escreve em seu diário sobre ele, chegando a dizer que ele é o único garoto com quem ela realmente se importa.

Chloe, por outro lado, é um pouco mais complicada: a personagem em si é extremamente complexa, e por causa de seus traumas, situação familiar e mudanças constantes de humor, suas interações são um campo minado. Um romance bem sucedido com Chloe depende fortemente de quantas vezes o jogador fica do lado dela nas situações que aparecem ao longo da história, o que pode ser um pouco difícil considerando que algumas de suas exigências beiram o irracional, ou podem levar a resultados drásticos e indesejados. Não atender a chamada de Kate, por exemplo, diminui as chances de salvá-la, mas aumenta as chances de romance com Chloe, ao passo que não tentar atirar em Frank faz com que ele seja mais cooperativo no futuro, mas deixa a garota insatisfeita.

No fim, qualquer que seja a rota escolhida, Max vai sempre demonstrar insegurança e inabilidade ao lidar com sentimentos românticos, algo que é típico e esperado de sua idade e personalidade, podendo ser percebida até como como assexual – já que é possível optar por não ter nenhum romance – dependendo da interpretação pessoal do jogador, mas apesar de todos esses fatores, é importante ressaltar que todas as escolhas nesse tópico são REAIS e VÁLIDAS. Nos meses que seguiram o lançamento do jogo, uma onda fortíssima de apagamento bissexual e bifobia – e até acefobia – levou vários fãs a negarem ou ressignificarem completamente as interações que validassem Max – e a própria Chloe, que fala sobre ter tido interesse em garotos e garotas em determinado ponto da história – como bissexual, atacando abertamente pessoas que escolhessem e defendessem o ship oposto.

No mais, se eu tiver que apontar defeitos no jogo, a lista acabaria sendo bem pequena. Existem, é claro, as escolhas sem nenhuma consequência para a história – como regar ou não uma planta -, as pequenas inconsistências de roteiro, o problema de sincronia labial – que só foi um problema real no primeiro episódio -, além de algumas animações estranhas e bug gerais, que acabam nem incomodando tanto por conta da estilização do visual em geral. O único fator que atrapalha de forma significativa a experiência de jogo é, ironicamente, o final.

Para um jogo com tantas escolhas a serem feitas, Life is Strange desaponta ao oferecer ao jogador um desfecho que ignora toda a jornada que levou até aquele momento e se baseia inteiramente em uma escolha binária e excessivamente drástica. Em comparação com a complexidade dos eventos que foram construídos ao longo dos cinco capítulos, a escolha é tão simplória que beira o ridículo, e qualquer que seja a decisão tomada, o final é desprovido de carga emocional e profundidade de personagem, e basicamente destrói o envolvimento que foi criado com tanto empenho ao longo do jogo.

De um ponto de vista de roteiro, é possível visualizar o tipo de raciocínio que levou a essa escolha: o sacrifício de uma vida para salvar várias, ou o sacrifício de várias vidas para salvar uma pessoa amada é lugar comum em histórias que envolvem poderes ou habilidades únicas que assumem proporções muito grandes. Mesmo assim, ver o empenho que foi colocado em 15 horas de jogo ser jogado fora em benefício da simplicidade de um final de dois extremos ainda é muito frustrante.

Após seu lançamento, Life is Strange causou uma série de repercussões em vários âmbitos: desde campanhas anti-bullying financiadas pela Square Enix – distribuidora do jogo – a debates sobre representatividade em videogames, o jogo deixou sua marca e lançou uma nova luz no modo como games se relacionam com a realidade e na influência que têm no contexto cultural da comunidade gamer. Mesmo depois de cinco anos, seu valor artístico permanece não afetado pelo tempo, e continua transmitindo o sentimento forte de melancolia e saudosismo que se propunha a evocar, se mantendo relevante como referência de qualidade para o gênero até hoje. O jogo teve um prequel e uma segunda temporada, que eu mesma ainda não criei coragem de jogar, por medo de interferir na memória agridoce que eu tenho do original, e se esse não é um testamento à longevidade da nostalgia em Life is Strange, eu não sei o que mais poderia ser.


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