Mulher-Maravilha – Tudo que um filme de super-heroína poderia ter sido

Era outubro de 2014 quando Kevin Feige, presidente da Produção da Marvel Studios, anunciou que a empresa lançaria um filme para a Capitã Marvel em 2018. Claramente, naquele ponto, a Marvel já angariava um bem sucedido universo para os seus filmes. Faltava, porém, um filme cuja protagonista fosse uma heroína e, até então, a empresa não acreditava na Viúva Negra como personagem principal. A produtora precisava de um filme com uma heroína icônica e, infelizmente para a Marvel, a mais icônica heroína da história dos quadrinhos está no elenco da editora concorrente.

A questão é que, não só a Marvel precisava de um filme de super gente protagonizado por uma mulher, mas o público também precisava. Há anos os fãs de cinema de super-heróis engoliam filmes de homens de ferro, de aço, ou morcegos, ou aranhas. Desses, tínhamos aos montes. Quando o cinema baseado em quadrinhos parecia se renovar, recebemos uma sequência de filmes dos mutantes com uma equipe lotada de mulheres cheias de potencial, mas sempre com o mesmíssimo protagonista – um brutamontes com facas que saiam das mãos. Já passava da hora da Mulher-Maravilha, o maior nome feminino das HQ’s, ter seu próprio filme!

Mas será que já estava mesmo na hora?

Parece absurdo pensar que foi preciso a Marvel fazer o anúncio de que uma de suas heroínas estaria nas telas para que a DC/Warner começasse a se mexer nesse sentido, né? Só que já fazia ANOS que a DC vinha se mexendo pra fazer um filme da Mulher-Maravilha. E foi se arrastando com projetos malfeitos, cheios de má vontade e que passavam longe da essência da personagem.

Desde o início dos anos 2000 pipocavam rumores sobre um possível roteiro para um filma da Diana. Primeiro, um que foi escrito por fãs e que a Warner comprou, embora dissesse que não iria usar. Depois, Beyoncé teria sido escalada pro papel da amazona. Havia um roteiro para uma comédia romântica que nunca saiu do papel. Em 2011, um piloto de série com uma ótima atriz e um roteiro sofrível (Wonder Woman, 2011) foi rodado, mas não foi aceito por nenhuma emissora de TV. Na metade da década, Joss Whedon esteve em contato com a Warner e seu projeto (graças à Hera!) também foi recusado.

Até que chegamos no anúncio do longa para a Capitã Marvel. E isso realmente mexeu com os dirigentes da DC/ Warner. Era imprescindível aqui que a produtora lançasse um filme da Wonder Woman primeiro, como uma questão de honra – como assim a Capitã Marvel vai ter um filme e até hoje a Mulher-Maravilha não tem? Quem é Capitã Marvel, gente?!

Foi então que em novembro de 2014 a Warner finalmente anunciou que escolheu uma diretora para o filme, Michelle MacLaren, que desistiu do projeto um mês depois afirmando diferenças criativas com o estúdio. Entre outras coisas, ela gostaria que Diana tivesse um tigre de estimação, com quem conversaria – afinal ela é uma princesa, e princesas falam com animais.

A título de informação eu preciso dizer que sou um grande fã da personagem, de longa data. E como todo fã eu me tornei um entusiasta e pesquisador, de modo involuntário, de todo o universo da amazona. Eu sei que colocar isso aqui soa como se eu estivesse tentando validar, de alguma maneira, minha opinião (e talvez esteja). A questão é que eu ficava cada dia, mês e ano que se passava mais decepcionado com a indústria hollywoodiana, não só por esse descaso com essa personagem, mas com tudo que vinha dessa indústria sobre mulheres quando se tratava de protagonismo feminino.

Uma parte de mim se alegrava com a possibilidade de Mulher-Maravilha finalmente estar nos cinemas. Outra parte se desesperava quando lembrava do que o cinema fez com a Mulher-Gato de Halle Berry (Catwoman, 2004) e com a Tempestade, da mesma atriz, na franquia de X-Men – os exemplos são poucos porque existem poucas mulheres de destaque nessa categoria. E a ansiedade só piorava com todas as confusões em torno do roteiro desse filme que agora seria feito às pressas porque tinha que ser lançado antes do filme da Carol Danvers.

A atriz que viveria o papel a gente já conhecia: Gal Gadot foi escolhida em 2013. Ela apareceria antes, no filme de 2016, BvS (Batman v Superman: Down of Justice, 2016). Mulher-Maravilha (Wonder Woman, 2017), teve sua estreia anunciada para julho de 2017, 1 ano e 8 meses antes da estreia de Capitã Marvel (Capitain Marvel, 2019).

Certamente que, durante o percurso, as esperanças de que viesse um bom filme se renovaram quando a gente viu, por exemplo, a Furiosa de Charlize Theron, em Mad Max: estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015), mas sempre me vem à cabeça a Ӕon Flux (2005) da mesma atriz e, claro, a Viúva Negra em Vingadores.

Essa enrolação toda é pra você entender em que contexto foi produzido Wonder Woman. A gente tem um histórico péssimo de representação feminina em filmes de super-heróis. Mulher-Maravilha era um filme necessário, mas também foi feito às pressas para competir com a Marvel e veio depois de dois filmes que não agradaram em nada os espectadores da DC/Warner: O Homem De Aço (Man Of Steel, 2013) e BvS. E a diretora responsável, Patty Jenkins, não era tão conhecida assim. Então era realmente uma incógnita o que nasceria dali.

Mas, finalmente, chegou julho de 2017 e o filme da Diana entrou em cartaz. A recepção foi muito boa. Foram 11 milhões de dólares nas pré-estreias nos EUA. Mundialmente o filme arrecadou R$ 223 milhões e se tornou a maior estreia dirigida por uma mulher, e em termos totais, a maior bilheteria de um filme live action dirigido por uma mulher, arrecadando US$ 821 milhões. Eu vi o filme algumas vezes (11, se bem me lembro). E olha… Eu gostei do que vi. O filme é bom. Mas tem sérios problemas.

Para começar pelo óbvio, temos aquele terceiro ato maçante. Ares é um vilão caricato, sem propósito real, inverossímil. Teatral demais, eu diria. Cheio de frases de efeito e desperdiçando um ótimo ator em um papel que realmente não lhe cabe. O roteiro não ajuda sequer a própria Mulher-Maravilha, completamente desconectada da personagem que era nos dois primeiros atos.

No entanto, como eu disse, esse é o problema óbvio. O que a maioria percebe. Mas, o maior problema de Wonder Woman passa longe de ser esse. Vamos lá: dois anos antes o público masculino estadunidense – que serve para medir a audiências dessas produções que, afinal, são americanas – fez uma campanha massiva para boicotar Mad Max por conta de seu protagonismo feminino. Depois, corriam soltas as notícias das adaptações que Jenkins teve que fazer no roteiro porque a direção da Warner reclamava o tempo inteiro do que estavam vendo.

Para se ter uma noção, a diretora disse em entrevista que teve que desenhar – literalmente, não foi uma figura de linguagem – a cena “Terra de Ninguém” para que a alta cúpula da produção não cortasse a cena do filme por achar que ela não acrescentava nada para a trama. Talvez você não lembre, mas essa é a cena em que Diana decide que não é apenas uma princesa, mas que ela é um agente de mudanças. É aquela parte do filme em que ela finalmente põe a tiara na cabeça, dentro de uma trincheira no meio de uma guerra e diz ao Steve Trevor: “Talvez você não possa fazer nada por essas pessoas, mas eu posso!”. Nada não, mas é nessa cena que ela deixar de ser Diana, a filha de Hipólita, e se transforma na “Mulher-Maravilha”.

E é por isso que, no segundo seguinte, ela surge subindo uma escada, reluzente, brilhante, colorida em meio a um cenário todo cinza (e limpa, apesar de estar há horas caminhando atolada em lama). Ali ela renasce como protagonista. “Como alguém pode dizer que essa cena é inútil?” É fácil: apesar do filme ser dirigido por uma mulher, a produção da Warner ainda é majoritariamente composta… por homens.

Os mesmos que decidiram que o filme não poderia acontecer se ela não tivesse um par romântico – que tinha que ser um homem. E que esse homem deveria ter importância no desenvolvimento da trama, ele não poderia ser como o Mad Max, que emprestou seu nome para um filme que não era dele. Os mesmos que disseram que a protagonista, mesmo tendo outras cem razões, só manifestaria todo seu poder quando sentisse a maior dor que uma mulher pode sentir: ver seu amado morrer… Ou seja, os problemas dessa produção estão na forma como o filme foi (re)pensado enquanto era feito: do mesmo jeito errado como vinha sendo pensado nos dez anos que antecederam seu lançamento.

E aqui retorna a pergunta máxima desse texto: estava mesmo na hora de termos um filme da Mulher-Maravilha?

E para não dizer que não falei de flores, há muito o que se exaltar nesse filme. Gal Gadot é carismática e entrega atuação. Nada que lhe garanta um Oscar, mas ela consegue ser séria quando deve e demonstrar afeto nos momentos certos, o que é bastante peculiar da personagem. Chris Pine desempenha bem o papel pro qual serve Steve Trevor: alívio cômico. Além disso, a trama convence, apesar do vilão, e Lucy Davis é sempre maravilhosa – sentirei falta da Etta Candy na sequência. Wonder Woman consegue ser feminista sem ser panfletário. Ele fala da força que uma mulher pode ter e mostra que Diana questiona os meios do patriarcado, por excluir as mulheres de suas decisões e exaltar homens covardes, que decidem pela morte de pessoas que eles enviam para as batalhas que eles mesmos não vão.

Isso sem falar nos diálogos sutis que mostram que mulheres não precisam de homens para sentir prazer (e sim, Diana se relacionava com outras mulheres na ilha e já tinha feito sexo antes de conhecer Steve). O veredito é que Mulher-Maravilha não foi o melhor filme que poderia, mas foi o melhor filme “possível”. Porque tudo que Jenkins pôde fazer pra manter as ideias originais que ela teve sobre o filme, eu creio, ela fez. Mas o cinema certamente não estaria pronto pra receber uma Diana tal qual a gente já lê nas páginas das revistas em quadrinhos. A cúpula da Warner não a aceitou e, caso aceitasse, talvez o público reagisse mal.

Por fim, já que estamos falando de coisas boas, dia 28 de julho, durante o evento DC Fandome, foi lançado o segundo trailer da sequência: Mulher-Maravilha 1984 (Wonder Woman 1984 – 2020). O drops não decepcionou e apresentou a versão final da Mulher-Leopardo, que não aparecia no trailer anterior. Minhas expectativas: boas para ótimas. Embora me fira um pouco que se faça necessário a presença do Steve Trevor, mais uma vez. Não precisava. O desempenho da Mulher-Maravilha não pode ser eternamente atrelado à presença de um homem.

O filme tem estreia mundial dia 15 de outubro (aqui no Brasil a estreia é adiantada para o dia 05). Na verdade, esta já é quarta data, sendo que a primeira foi para julho desde ano, cancelada por conta da pandemia de covid-19. Só rezo para que Patty Jenkins tenha muito mais liberdade criativa nesse filme do que teve no anterior e que Diana consiga mostrar tudo que ela pode ser, por ela mesma, por seu propósito, por seu compromisso com a humanidade, muito mais como heroína do que como uma mulher apaixonada.


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