Por Pedro Igor
Texto resultado da OFICINA DE CRÍTICA DE CINEMA PARA PESSOAS DISSIDENTES, COM ERIC MAGDA LIMA – MINISTRADA NA CASA AMARELA EUSÉLIO OLIVEIRA DURANTE O PERÍODO DE 18 DE JUNHO A 02 DE JULHO.
Há algum tempo nutro o hábito de ver filmes com minha mãe. Não sei quando isso começou, mas sei que minha progenitora se tornou uma exímia cinéfila. Creio que ela sempre o foi, eu que nunca o reparei até pouco tempo atrás. No dia do Cinema Nacional, mamãe e eu decidimos assistir a um filme brasileiro. Demos sorte de estar com os boletos da Netflix pagos e nos demos o luxo de escolher algo do catálogo.
Naquele dia, eu convenci minha mãe a assistir um filme que há muito queria ver. Lembro-me do nem tão distante assim 2022 quando em uma aula de roteiro na graduação ouvi falar pela primeira vez de Pacarrete (2019). Um colega da turma tinha para aquele longa um lugar especial em seu coração: ele era natural de Russas, onde o filme se passa.
Pacarrete reconstrói a história de uma personagem única da cidade e que fez parte da infância do diretor, Allan Deberton: uma bailarina idosa, que um dia já foi uma respeitada professora de dança na capital, mas que passou seus últimos anos tida como uma velha louca e ranzinza. A personagem entrou para as telas na interpretação de Marcélia Cartaxo e não obstante também posso dizer que, como meu colega de Russas, entrou para minha vida.
Confesso que me emociono facilmente com histórias baseadas em fatos reais, assim como minha mãe. Mas mamãe passou boa parte do filme rindo das loucuras de Pacarrete: gritava com as crianças que cruzassem seu caminho, lavava o calçamento diariamente e repetidas vezes, punha plantas na frente de casa impedindo a passagem dos transeuntes, flertava com o dono do bar que cordialmente a entendia. No ápice de sua loucura, Pacarrete decide se apresentar na festa de 200 anos de Russas, um balé no meio de uma festa de forró. Uma bailarina de sua estirpe merece provar seu valor e entrar para a memória da cidade, como alguém além de uma velha louca e ranzinza.
Pacarrete afirma que seu nome é derivado do francês pâquerette, a margarida. Sua casa abriga quinquilharias e fitas VHS tão antigas quanto as próprias moradoras. Mesmo no calor cearense, Pacarrete se veste bem, com vestidos coloridos e chapéus demodê. Tem a vaidade de toda bailarina, quer ser ela própria obra de arte pelas ruas de Russas.
Pergunto-me quantas Pacarretes já não encontrei pela vida, quantas loucas cuja maior loucura era o medo de serem esquecidas e apagadas completamente da memória. Esse era o maior medo de minha tia Socorro, a quem todos carinhosamente chamávamos de Corrinha. A partir de uma certa idade, Corrinha se tornou a louca dos gatos do bairro: dava comida e abrigo para aqueles animaizinhos, brigava com os meninos de rua que os maltratavam. Chegou a fazer amigas que compartilhavam sua loucura por gatos e contagiou os sobrinhos com seu delírio. Era o que a mantinha viva, assim como Pacarrete estufava o peito para falar de balé: tinha a expertise necessária para tal, jamais se deixaria ser subestimada nessa área do saber.
Corrinha era no entanto a louca mais lúcida que já conheci na vida. Por muitos anos, foi a pessoa com a maior escolaridade em nossa família e também quem alfabetizou inúmeras crianças do bairro. Corrinha achava que a única forma de mudar o mundo era por meio da educação, seu ato mais revolucionário era encorajar seus sobrinhos a continuar estudando, coisa que suas irmãs não puderam fazer. Corrinha morou na Itália, tentou ser freira lá, falava italiano e ouvia músicas em italiano. Contava histórias sobre o Festival de Sanremo, sobre Palermo, sobre a Sicília, sobre as irmãs do convento, e sobre as crianças que cuidou lá. Tinha expertise nessa área.
A história de Corrinha sempre povoou minha memória. E quando a perdemos meu maior medo era que suas lembranças se tornassem névoa passageira e irregular. Creio que esse foi um dos motivos que levou Allan Deberton a escrever e dirigir a história de Pacarrete. A velha louca e bailarina ranzinza queria mudar Russas, queria construir escolas, que as pessoas de sua pequena cidade tivessem acesso à arte e tudo aquilo que ela poderia proporcionar. A personagem de Marcélia Cartaxo não queria ser esquecida, ou melhor, não queria ser lembrada como louca. Mas percebe que sua loucura é o que faz dela quem é. Porque a arte prescinde o delírio social e a inquietação constante. Pacarrete, na vida real e no filme, foi uma artista. Minhas tias costumavam me repreender sempre que estava prestes a cometer alguma loucura na infância, como descer a rua no patinete em alta velocidade, com dizeres: “Não faça uma arte dessas”. O filme de Deberton celebra o direito à loucura, o direito de amar a arte, falar sobre ela, incentivar as pessoas a consumir arte.
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