Ridley Scott tem experiência com inúmeros gêneros cinematográficos. O diretor já trabalhou com ficções-científicas, fantasias, distopias, histórias de gângsters e outros criminosos, e especialmente épicos. Nem sempre o cineasta acerta o tom de seus filmes, mantendo altos e baixos em sua filmografia, mas sempre tenta explorar uma boa variedade de gêneros, mesmo que, dentro de cada um deles, se mantenha num lugar seguro. Mas há um gênero em específico em que a direção de Scott, em minha opinião, quase sempre escorrega e descamba para o fracasso: a comédia. E é curioso perceber que um diretor tão veterano e que supostamente deveria reconhecer suas deficiências como artista, continue insistindo em algo que não consegue realizar bem, quando existem outros campos onde seu desempenho, mesmo que não suprindo uma expectativa alta, ainda se mantêm medianamente eficaz.
Quando foi anunciado que Ridley Scott faria um filme sobre o estadista e exímio líder militar francês Napoleão Bonaparte, com Joaquin Phoenix interpretando o papel principal, logo imaginei que veríamos mais um de seus audaciosos épicos, ao estilo de Gladiador (Gladiator, 2000), Cruzada (Kingdom of Heaven, 2005) ou até mesmo o recente O Último Duelo (The Last Duel, 2021), filmes que até podemos apontar vários equívocos, mas que deve-se concordar que são competentes dentro de seu escopo. E mesmo sendo eu um historiador, não caio na obviedade de criticar as incoerências factuais desses filmes, até mesmo gosto de como o diretor e os roteiristas com quem faz parcerias se deem a liberdade de desprenderem-se de qualquer obrigação com a verdade dos fatos, fazendo muitas vezes com que a dinâmica de seus filmes se torne mais fluida do que se estivéssemos vendo algo historicamente coeso. Porém o que acompanhamos nas mais de duas horas e meia de Napoleão (Napoleon, 2023) é um festival milionário de desarranjos que jamais funciona como unidade, onde nunca entendemos a lógica do que o diretor e o roteirista David Scarpa estão tentando nos apresentar sobre uma figura tão icônica quanto Napoleão.
O primeiro erro (e o de muitas cinebiografias) é se propor a um recorte muito extenso da vida da figura que se quer retratar, e quando falamos de uma personagem histórica a qual já tanto se falou ao longo dos anos, explorado em livros, filmes, séries e claro, nos livros de história, com um papel tão destacado na história moderna da Europa e do mundo até então, essa tarefa se torna ainda mais complexa, e essa escolha cobra seu preço em um filme que mesmo com uma longa duração acaba ficando todo compartimentado, feito de partes de um mesmo quebra-cabeça montado em ordem cronológica, mas com peças que jamais se encaixam. E aqui, aquele cada vez mais comum pensamento de que uma obra neste formato, poderia se sair melhor em um formato seriado, acaba sendo quase inevitável.
Iniciando quando Bonaparte ainda é um jovem militar que adere às forças revolucionárias antimonárquicas em meio às convulsões caóticas da França instauradas em 1789, logo saltamos para o fim do chamado período do Grande Terror, quando vemos o surgimento do líder jacobino Robespierre (Sam Troughton) e poucos minutos depois sua execução pela guilhotina, dando lugar a um diretório que fica a frente da República até ser substituído pelo então cônsul Napoleão Bonaparte. Enquanto isso, Josefina de Beauharnais (Vanessa Kirby) e seus filhos do primeiro casamento, conseguem se libertar do cativeiro onde estiveram durante alguns anos por serem de família nobre, logo, inimigos da ascendente burguesia. Achou confuso? No filme é exatamente assim, sem nenhuma contextualização, não só histórica quanto de construção de personagens com quem deveríamos nos importar ou por quem ao menos deveríamos ter um certo interesse. E é nessa toada que o filme anda por toda sua extensão, uma cavalgada trôpega e incerta, perdida num caminho tão conhecido.
O filme nunca se decide por dar atenção às sequências de conquistas militares e políticas de Napoleão – e é preciso dizer que Scott não perde a mão nas sequências de batalhas, quando permanece ironicamente seguro de sua função – ou a paixão rocambolesca entre Napoleão e Josefina, que cai sempre em um humor torto e desagradável. O Napoleão de Phoenix é desenhado como uma caricatura que parece querer referenciar os cômicos personagens criados pela trupe inglesa Monty Python, mas sem nunca conseguir chegar nem perto deste objetivo, sugerindo muito mais um descuido numa tentativa de ironizar a grandeza de um homem tão diminuto como era o conquistador francês. E se a intenção era a de nos passar essa ambiguidade, de um habilidoso estrategista militar, sempre seguro em suas campanhas, para um inseguro marido que jamais admite que suas derrotas são realmente suas – as tentativas de manter a lealdade da esposa ou as de gerar um herdeiro para o trono -, essa ambição é tão despejada e didática que quase sempre perde sua potência.
Mesmo que, como geralmente percebemos nos filmes de Scott, Napoleão seja tecnicamente competente, com figurinos e um design de produção suntuosos, efeitos visuais marcantes quando necessários e cenários de encher os olhos, todo esse esforço se esvai, mostrando-se incompatível dentro de um filme que não demonstra o mínimo de coesão estrutural e narrativa. E se nem como épico o filme funciona, o que dizer da tentativa grotesca de tentar tirar dessa história alguma comicidade, mesmo que pretensiosamente sarcástica, que poderia até funcionar se não fosse a perceptível inabilidade do diretor e do roteirista neste objetivo. Napoleão, infelizmente talvez seja o Waterloo de Ridley Scott, uma derrota retumbante, mas que mesmo assim sendo, não o fará desistir ou admitir que já está na hora de se aquietar.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.