A Queda da Casa de Usher – Mike Flanagan presta um grandioso tributo a Edgar Allan Poe e a si mesmo

Em Outubro de 2018 A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House) foi lançada pela Netflix. Sendo seu primeiro trabalho no formato de minissérie, Mike Flanagan reinventa o cenário de séries de horror e dá início a uma parceria bem sucedida com a plataforma. Em A Queda da Casa de Usher (The Fall of the House of Usher, 2023) essa parceria é encerrada com um belo tributo às obras de Edgar Allan Poe e às obras do próprio Flanagan. A Queda da Casa de Usher combina o ar efêmero e o senso crítico de Missa da Meia Noite (Midnight Mass, 2021), com o terror psicológico e atmosférico de A Maldição da Residência Hill, dosando com alguns momentos de dramaticidade e vulnerabilidade de A Maldição da Mansão Bly (The Haunting of Bly Manor, 2020). 

Tomando como ponto de partida o conto homônimo de Edgar, a série costura diversos contos, poemas e personagens do universo e vida de Poe para narrar a ascensão e, principalmente, a queda do império construído pelos irmãos Madeline e Roderick Usher dentro da indústria farmacêutica, tecendo fortes críticas a crise dos opióides que tem acontecido na América do Norte. Com exceção do primeiro episódio, intitulado “Meia-Noite que Apavora” em referência a um trecho retirado do poema O Corvo, cada episódio recebe o nome de uma publicação de Edgar e tem sua trama principal focada em seu respectivo conto.

Apesar de cada conto funcionar como a espinha dorsal de seu respectivo episódio, o roteiro bebe da literatura de Edgar com muita criatividade, mesclando história, personagens e até acontecimentos da vida pessoal do escritor. Pequenas citações de poemas são distribuídas ao longo da série e, claro, temos diálogos densos e monólogos de tirar o fôlego, elementos que vêm se tornando marca registrada de Flanagan. 

Em seu ensaio “A Filosofia da Composição”, Edgar Allan Poe usa seu poema O Corvo como objeto de pesquisa para explicar sobre seu método de escrita. Neste documento ele revela que sempre começa a escrever uma história pelo final, desta maneira ele consegue estruturar a narrativa de forma mais coerente, pois sabe para onde a trama está indo. Podemos perceber essa técnica de maneira muito sutil em alguns trabalhos de Flanagan, mas em A Casa da Queda de Usher ele não apenas insere isso na estrutura da série, como leva o público a participar dessa jornada revelando de cara o que vai acontecer. Desde a primeira cena da série sabemos que cada um dos filhos de Roderick Usher irá morrer. 

Essa transparência continua em cada episódio, onde há uma repetição da estrutura narrativa: o episódio foca em desenvolver um personagem e este tem o momento de sua morte ao final. Essa transparência foi uma decisão ousada e arriscada que torna tudo bastante previsível, mas entrega uma boa construção dos personagens e acrescenta riqueza de detalhes ao momento final de suas vidas. Com esse movimento de extrema clareza, não há aquela obrigação muitas vezes maçante de criar revelações e surpresas. A experiência do espectador não é focada em se surpreender com o que vai acontecer, mas em observar os fatores que vão levar tal coisa a acontecer. Por volta da metade da série isso falha e a previsibilidade se torna chata, mas logo a série retoma seu fôlego, especialmente no quinto episódio, e prepara terreno para um encerramento de tirar o fôlego.

A direção compartilhada de Flanagan e Michael Fimognari cria uma atmosfera dúbia que à primeira vista parece mundana, mas ao dissecar aquele universo você passa a se questionar sobre o teor sobrenatural da história. Esse jogo é o que rege a temporada até quase seu fim, trazendo elementos sobrenaturais, mas colocando explicações lógicas bem coerentes. Nós últimos episódios por fim a série se posiciona quanto a isso e esclarece essas dúvidas.

“Está bombeando um coração morto e inútil” com estas palavras T’Nia Muller, que interpreta a inescrupulosa Victorine LaFourcade, condensa não apenas um acontecimento inesperado e agoniante da trama, como sintetiza muito bem os esforços dos Usher em impedir a própria ruína. Samantha Sloyan e T’Nia Muller estão magistrais nos papéis de Tamerlane e Victorine respectivamente. Presenteando o público com momentos de pura tensão e loucura. Ruth Codd trabalha com delicadeza o drama de Juno Usher, equilibrando muito bem com os momentos de humor que a personagem usa como mecanismo de defesa e sobrevivência. 

Carla Gugino sem dúvidas é o ponto de destaque no elenco, o que é uma tarefa difícil considerando o excelente trabalho de seus colegas de cena. Sua personagem traz fortes referências ao corvo. Seu nome, Verna, é um anagrama para Raven. Os figurinos e maquiagens sempre trazem semelhanças ao pássaro. Indo além de questões conceituais e de imagem, assim como o Corvo na literatura de Edgar, Verna carrega uma aura cósmica, fantasmagórica, assustadoramente divina e está diretamente associada à morte. Carla Gugino passeia pelos diversos contextos das aparições de Verna com uma versatilidade ímpar. Sem dúvidas o trabalho mais forte da atriz em parceria com Flanagan e, porque não, de toda sua carreira.

Infelizmente alguns retornos não receberam um material tão satisfatório quanto mereciam, seja pelo pouco tempo de tela, ou pela construção rasa de seus personagens, Rahul Kholi (Napoleon “Leo” Usher) e Kate Siegel (Camille L’Espanaye) não foram tão grandiosos como em trabalhos anteriores com o diretor e acabam passando batido alguns episódios após a morte de cada um. Sauriyan Sapkota (Prospero “Perry” Usher) também não dá retorno com um personagem fraco, mas o momento de sua morte é um show grotesco regido a uma estética estranhamente bonita, além de ser um evento que repercute durante toda a série, impactando diretamente no desfecho que alguns personagens. 

O elenco traz rostos conhecidos dos trabalhos de Flanagan, mas com “sangue fresco” que dão um verdadeiro show de atuação. Mark Hamill interpreta o impetuoso advogado Arthur Pym de maneira discreta, mas forte, ao longo da temporada. A primeira vez que Hamill mostra versatilidade e não soa como seu personagem em Star Wars, Luke Skywalker. Carl Lumbly e Malcolm Goodwin vivem o C. Auguste Dupin, icônico detetive da literatura de Poe que na minissérie trava uma batalha judicial contra a família Usher. Ambos tem uma performance muito requintada, elegante, mas Carl eleva o personagem nos tempos atuais, especialmente em suas cenas ouvindo as confidências de Roderick, que acompanham a temporada inteira como uma espécie de narração. Kyliegh Curran, que já havia trabalhado com Mike em Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019), traz humanidade para a corrompida família Usher com a bondosa e justa Lenora, rendendo o momento mais emocionante da série em uma cena ao lado de Carla Gugino.

Willa Fitzgerald e Mary McDonnall vivem com muita força a colossal Madeline Usher em diferentes linhas temporais. Willa constrói uma Madeline sagaz e ambiciosa, questionadora. Na linha temporal atual, Mary fortalece essa sagacidade da personagem, mas com muita maturidade, sendo a personagem mais racional e resolutiva do núcleo. De maneiras distintas, mas muito coerentes, ambas estão excelentes no papel e transformam Madeline em uma força imparável da natureza. Zach Gilford que havia tido um desempenho brilhante como um dos protagonistas de Missa da Meia-Noite, infelizmente não consegue brilhar aqui com o passado de Roderick Usher. Seu trabalho não é de todo ruim, mas se torna apático e esquecível ao lado de Willa, com quem compartilha a maior parte de suas cenas e em comparação a teatralidade de Bruce Greenwood como Roderick nos tempos atuais.

O fim de A Queda da Casa de Usher deixa um sabor agridoce, não por falta de qualidade pois encerra muito bem cada arco construído durante a série, mas deixa claro que aquele é um adeus de uma jornada que reinventou o horror na televisão, para os fãs mais assíduos, impossível não se emocionar lembrando das produções anteriores. Porém, traz quietude para o coração saber que os caminhos de Flanagan e Stephen King irão se cruzar de novo, pois está em andamento a produção da adaptação dos livros de A Torre Negra como série para a Amazon. O próprio King já se mostrou animado para esta produção, o que sabemos que é algo raro de acontecer, e isso aumenta as expectativas. Espero que Mike nos presenteie com mais uma adaptação inovadora, com seu olhar único para remontar estas obras.


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