Quantas vezes em nossas vidas nos deparamos com uma escolha impossível? Quando o nosso instinto é querer não fazer escolha nenhuma, não ter que fazer uma decisão tão dolorosa, onde qualquer que ela seja levará a uma dor excruciante? O primeiro pensamento que nos vem é: será que eu realmente preciso fazer essa escolha? Não há como contornar essa situação? Geralmente é o que fazemos, tentamos encontrar uma decisão menos sofrida, pesar os prós e os contras, analisar as consequências de cada uma delas, as possibilidade. Mas e quando essa tal escolha tem como base algo difícil de acreditar, algo que está no campo mais da fé do que do racional, algo que não faz sentido, mas que está se impondo à nossa frente esperando que tomemos uma decisão que pode ou não resultar em algo terrível?
Baseado no livro O Chalé no Fim do Mundo, de Paul Tremblay, o novo filme de M. Night Shyamalan, Batem à Porta (Knock at the Cabin, 2023), traz temas que o cineasta já havia abordado anteriormente em alguns de seus melhores roteiros, questões filosóficas que fazem nos questionar e refletir acerca de várias áreas da nossa existência, como a fé, a empatia e, claro, o amor.
A garotinha Wen (Kristen Cui) e seus pais Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) estão passando um tempo em um simpático chalé na floresta. Não uma floresta sombria e medonha, mas uma ensolarada e florida, onde se ouve o chilrear dos pássaros e se pode caçar gafanhotos sem nenhuma preocupação. Eles só não sabiam que em pouco tempo iriam ser responsáveis pelo destino de toda a humanidade. Claro que ninguém espera por isso. Se já dificilmente paramos pra pensar nas consequências dos nossos atos para com as pessoas ao nosso redor, imagine no que pode afetar a humanidade inteira. E pior, eles não conseguem entender – ou nem ao menos acreditar – o porquê de eles terem essa responsabilidade imensa. Mas o fato é que eles descobrem que têm essa missão através de quatro estranhos que invadem o chalé – Leonard (Dave Bautista), Sabrina (Nikki Amuka-Bird), Adriane (Abby Quinn) e Redmond (Rupert Grint) -, que chegam armados com estranhas ferramentas e atordoados, contando sobre uma espécie de visão que tiveram em comum e que os levou até ali.
O fato de estarmos vivendo uma era de teorias da conspiração, forte conservadorismo (muitas vezes atrelado a um fanatismo religioso) e um renascimento de ideologias neofascistas, logo nos faz pensar que o grupo não passa de um bando de maníacos neuróticos, e possivelmente motivados pelo ódio àquela família não tradicional: dois pais homossexuais e uma filha com feições orientais asiáticas. Foi também o que Eric e Andrew pensaram. Mas nada é explicado de forma simples, e a agonia do grupo torna suas motivações cada vez mais confusas. Segundo eles a visão que tiveram exige que a família decida por fazer um sacrifício ou a humanidade sofrerá punições eventuais na forma de catástrofes inexplicáveis.
Quem já viu alguns dos filmes do Shyamalan sabe que o diretor é mestre em criar um clima de desconforto e mistério através não apenas de seu texto, mas da forma como decide filmar. Em Batem à Porta ele consegue o feito de ao mesmo tempo apontar a urgência da “missão” daquelas pessoas, mas sem nunca apressar a narrativa ao ponto de a deixar confusa. Com exceção de dois dos personagens que são claramente mais nervosos e irritadiços, Andrew e Redmond, todos os outros falam compassadamente como se tentassem não apenas convencer aos outros do absurdo que estavam decididos a realizar, mas também convencer a si mesmos daquilo. A câmera, quase sempre em close-up nos personagens, parece tentar nos fazer olhar nos olhos daqueles e tentar perceber se ali existe uma crença real no que estão afirmando.
Todo esse foco, na crença e na veracidade, requer um trabalho especialmente sutil do elenco, nas expressões, no olhar, até mesmo no tom de voz, o que até certo ponto é alcançado, especialmente com Groff e Bautista. A música tensa sem muitos rodeios de Herdís Stefánsdóttir, compondo o cenário de emergência gradativamente, e a fotografia enfática do talentoso Jarin Blaschke (conhecido por suas parcerias com Robert Eggers), sem medo de se exceder na luminosidade intensa e nas cores vibrantes, o que funciona narrativamente muito bem, cria o tom de iminente catástrofe que está nas mãos de Eric, Andrew e Wen. A mensagem no roteiro é bastante clara e didática, e a metáfora judaico cristã é óbvia e está inclusive presente em alguns diálogos, com a palavra “apocalipse” sendo repetida algumas vezes. Batem à Porta não é um filme que te faz buscar os simbolismos nos detalhes ou analogias implícitas, mas nos leva a reflexão, a nos colocar no lugar das personagens e nos perguntar: o que faríamos?
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.