É impossível falar de Hellraiser sem falar de seu criador, o britânico Clive Barker. Uma das maiores vozes da literatura de terror, Barker fez seu nome ao criar um estilo que alia o gore com uma aura sexual, muitas vezes descambando para o body horror. Seu sucesso na literatura o levou a ser chamado de Stephen King britânico, uma alcunha bastante equivocada, visto que a única coisa que eles têm em comum é o fato de enxergarem o terror em coisas mundanas e ordinárias. O nome de Clive se firmou de vez no gênero quando ele resolveu dirigir uma adaptação de sua própria obra, a novela The Hellbound Heart, que no Brasil foi lançada com o mesmo título do filme, Hellraiser: Renascido do Inferno (Hellraiser, 1987). Estreando na direção, Barker fez um trabalho extremamente competente, mesmo com o orçamento limitado e um elenco sem grandes nomes. No entanto, mais que o filme em si, o que ficou marcado na cultura pop e entrou para o hall dos grandes monstros da história do cinema de terror foi o principal antagonista do filme, o demônio Pinhead (Doug Bradley). Pertencente a uma raça conhecida como Cenobita, ele tornou-se icônico tanto pela interpretação calculadamente inexpressiva como pelo visual sadomasoquista levado ao extremo, com muito couro e metal. Ele é, assim, a personificação exata da visão de Barker que une sexo e horror corporal em iguais proporções.
O sucesso do filme, além de popularizar o nome do escritor/diretor e de imprimir Pinhead no imaginário popular, levou ao lançamento de nove continuações nas décadas seguintes, todas inferiores ao primeiro filme, tanto em qualidade quanto em sucesso financeiro. Com isso, a franquia ficou tão desgastada que a solução encontrada foi buscar readaptar o livro que serviu de base para o filme original, surgindo assim Hellraiser (2022), que possui elementos suficientes para situá-lo no universo já estabelecido pelos filmes anteriores, mas que traz mudanças substanciais se comparado não só ao primeiro filme, mas também ao livro.
Na história, Riley (Odessa A’zion) vive com seu irmão, Matt (Brandon Flynn), e o namorado dele, Colin (Adam Failson), enquanto se recupera de seu vício em drogas. Para ajudar o namorado, Trevor (Drew Starkey), ela o acompanha em um roubo a um galpão que guarda objetos valiosos pertencentes a um milionário, dentre eles a famosa Configuração de Lemarchand (também conhecida como Configuração do Lamento), um quebra-cabeças mágico cuja resolução traz à Terra a presença dos demoníacos Cenobitas. A partir disso, inicia-se uma narrativa estruturada no slasher, com cada pessoa que põe as mãos no cubo – e que promove alguma alteração nele – tornando-se alvo de Pinhead (Jaime Clayton) e seu grupo, que os torturam e os levam para o Inferno. A primeira vítima é Matt, o que leva Riley a uma busca desesperada para resgatar o irmão e se livrar do objeto, enquanto lida com outros interessados no poder da Configuração.
Somente por essa sinopse já é possível perceber que o filme se afasta bastante do que foi visto tanto no filme de 1987 quanto no livro, servindo mais como uma outra história ambientada nesse universo, com atualizações conceituais tanto na representação de Pinhead, agora interpretado por uma mulher, como no próprio design e nas funcionalidades da Configuração, que deixa de ser um cubo e que passa a criar situações diferentes conforme a disposição de suas peças. São mudanças interessantes que dão particularidade ao filme e não desvirtuam o que o original trazia. Além disso, e diferentemente das sequências mais recentes, houve um investimento de orçamento razoável no novo filme, que resultou em um elenco eficiente e uma produção com qualidade nos efeitos visuais e de maquiagem, o que o aproxima mais do primeiro filme.
No entanto, faltou no Hellraiser de 2022 o que o de 1987 tinha de sobra: o gore, uma sensualidade repulsiva, a contestação da moralidade vigente. Até no que tinha de imperfeito e sujo, o primeiro Hellraiser brilhava, pois só atestava a visão de Barker que, ao mesmo tempo, abraçava e criticava o hedonismo, o culto à satisfação pessoal e transformava os personagens humanos em seres tão perigosos (e sensuais, e repugnantes) quanto os próprios Cenobitas. Nesta versão de 2022 tudo é muito asséptico: não há aquela provocação contra a moral e os bons costumes que Clive Barker expressa tão bem em sua obra e que mostrou em sua estreia na direção. Na obra atual, sente-se o tempo todo um receio de se ultrapassar o limite do que seria o “bom gosto”. Fosse uma das inúmeras sequências lançadas para se arrancar mais um centavo da franquia, isso seria irrelevante. No entanto, como uma obra que se propõe a revitalizar essa mesma franquia, chega a ser decepcionante. Isso torna o Hellraiser atual um filme ruim? De modo algum. Fica apenas a sensação de que poderia ter ido mais longe, e o resultado final é uma obra que pode até proporcionar momentos interessantes e “divertidos”, mas que passa longe do caráter subversivo que poderia ter.
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Cineasta e roteirista, formado em Letras e graduando em Cinema, respira literatura, filmes e séries desde que se entende por gente. É viciado em sci-fi e terror, e ama Stephen King, Spielberg e Wes Craven. Tem mais livros em casa, e séries e filmes no computador de que seria humanamente possível ler e assistir, mas não vai desistir de tentar. Não consegue lembrar o que comeu ontem, mas sabe decorado os vencedores do Oscar de melhor atriz do últimos trinta anos (entre outras informações culturais inúteis).