Aftersun – As belezas e as complexidades da relação pai e filha

Aftersun (2022) foi lançado no finzinho do ano passado e me atropelou com sua potência, me emocionou e quase me fez imediatamente ligar para a minha analista. Nele acompanhamos uma garota que se usa de memórias e filmagens de uma viagem que fez com o seu pai quando ainda era criança, numa tentativa de compreender melhor quem foi esse pai. Um pai complexo, misterioso, que não deixava muito claro como se sentia ou pelo que estava passando. Temos uma ideia de que ele estava em um lugar muito ruim psicologicamente, em um estado de sofrimento e angústia intensos, ideia essa que o filme nos mostra apenas levemente nos momentos em que ele não está com a sua filha, porém não conseguimos ter acesso ao que verdadeiramente se passava na vida desse cara naquele momento específico. Essa viagem foi marcante para a filha por alguma razão e nós acompanhamos esses recortes de memórias.

É um filme muito contemplativo, são várias cenas em que os dois estão juntos aproveitando o momento, em um silêncio cheio de intimidade. Não somos bombardeados de grandes plots, reviravoltas ou grandes acontecimentos. É apenas uma viagem de pai e filha compartilhando momentos banais, divertidos, às vezes de desentendimento, mas que carregam um sentimento que é tão difícil de se desvendar, o sentimento que permeia essa relação, que nos faz procurar no mais fundo da nossa memória algum momento que foi marcante, algum momento que nos deu uma pista do que estamos tentando compreender, algo que deixamos passar, mas que por algum acaso está ali, escondido nos escombros dessas lembranças que nem sempre são fáceis de acessar. Em algum momento nós percebemos que ele já sabia que aquele seria o último momento dos dois juntos, então fez o máximo de esforço para oferecer boas memórias, cheias de afeto, alegria, tranquilidade.

Acompanhar a Sophie (Frankie Corio), nossa protagonista, na sua tentativa de descobrir através dessas memórias algum tipo de saber sobre esse pai (Paul Mescal), sua tentativa de descobrir se algo escapou aos seus olhos por ser tão jovem na época, se durante aquela viagem haviam pistas do que seja lá que tenha acontecido, o que imagino ter sido a morte desse pai, se havia algo que ela poderia fazer para que o que veio depois dessa viagem fosse evitado. As teias dessa memória são confusas, dolorosas e frustrantes, digo por experiência própria, já que até certa idade nós não conseguimos perceber bem as dualidades daqueles que nos cercam. Acreditamos que aquelas figuras que são os centros da nossa vida são os mais fortes, os mais sábios, os heróis da nossa vida. Só o tempo nos permite ir percebendo as falhas, os erros, os equívocos, as fragilidades. É sempre uma sensação de que as nossas memórias nos traíram, que deixamos escapar qualquer vestígio de um real saber sobre essas figuras. 

Para mim o filme expressa com imensa sensibilidade a forma como as crianças enxergam os seus pais ou cuidadores, como esses adultos tantas vezes precisam fazer malabarismos para esconder seus reais sentimentos, tudo em uma tentativa de oferecer para seus filhos os melhores e mais doces momentos, as lembranças mais cheias de risadas e felicidades, uma tentativa de esconder e mascarar as sensações tristes, ruins, difíceis e que nos deixam na miséria emocional diversas vezes. Para quem tem uma relação difícil com o pai, como é o meu exemplo, esse filme toca em lugares que agora, enquanto adulta, não quero acessar, mas que me esforço na minha própria análise a reconhecer que além de figura paterna, ele é um ser humano cheio de contradições e nuances. São relações difíceis a de pais e filhos, diria que quase impossíveis de se compreender por completo, de abarcar completamente os níveis complexos dos sentimentos que perpassam durante a vida, mas é uma relação que existe, não escapamos.

Não sabemos o que Sophie tirou de saber dessa sua tentativa de rememorar seus últimos momentos com seu pai, talvez a tenha deixado ainda mais confusa e sem as respostas que procuravam, mas com certeza o público teve o deleite de observar uma nova diretora – Charlotte Wells – que em toda a sua sensibilidade e simplicidade conseguiu construir um filme com um enredo tão potente, tão cheio de dualidade, nos sentimos felizes, tristes, alegres, melancólicos, é como se o filme inteiro fosse um jorro de sentimentos opostos. Aqui eu vejo o cinema em sua essência, o que sentimos através das atuações brilhantes dos dois protagonistas, não precisa o tempo inteiro estar no diálogo, no dito, apreendemos muito através dos seus corpos, trocas de olhares, silêncios. É no não dito que está o segredo mais rico que encontramos em Aftersun.


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