Encanto – Não existe família perfeita

Encanto (2021) é o 60º filme da Walt Disney Animation Studios e o primeiro a estrear exclusivamente nos cinemas desde o início da pandemia de Covid-19. Em uma pesquisa rápida no Dicio, é possível ver que a palavra “encanto”, em português, significa “ação de encantar, de cativar, fascinar por suas boas qualidades (talento, inteligência, simpatia, bondade, beleza etc.).” Não muito diferente do significado original da palavra em espanhol, pode ser usada para descrever diversas coisas e não poderia ser um título melhor para o filme em questão.

Encanto neste caso é um lugar, uma vila, uma comunidade escondida entre montanhas na Colômbia cuja dinâmica gira em torno de uma família, a família Madrigal. Os membros da família vivem em uma casa mágica que concede dons mágicos para cada um quando atingem uma certa idade para ajudarem a vila. Todos, menos Mirabel, a única Madrigal sem um dom, mas que ainda assim ama sua família e ama fazer parte dela. Porém, a magia da casa parece estar acabando e Mirabel sente que é sua responsabilidade consertar as coisas.

O filme foi dirigido por Jared Bush, roteirista de Zootopia (2016) e de Moana: Um Mar de Aventuras (Moana, 2016), Byron Howard, diretor de Zootopia e de Enrolados (Tangled, 2010) e Charise Castro-Smith que foi da equipe de produção de A Maldição da Residência Hill (The Haunting of Hill House, 2018) e da equipe de Raya e o Último Dragão (Raya and the Last Dragon, 2021).

Os três participaram do roteiro junto com Jason Hand e Nancy Kruse, ambos veteranos no estúdio, e Lin-Manuel Miranda (vamos falar com calma sobre esse homem mais para frente), que também dividiu a trilha sonora com Germaine Franco, que por sua vez trabalhou na trilha sonora de Viva: A Vida é Uma Festa (Coco, 2017) e é a primeira mulher latino-americana (pelo que pesquisei ela é filha de mexicanos nascida nos Estados Unidos) a ser convidada para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, ou como gostamos de chamar, a Academia do Oscar.

Falando de termos técnicos o filme é deslumbrante, possui uma riqueza de detalhes absurda, é fácil de acreditar que realmente estamos em uma pequena e remota vila no interior da Colômbia. Cada detalhe desde a direção de arte, passando pela fotografia, a animação e a direção contribuem para o lindo visual.

Os momentos musicais em especial ousam nos movimentos de câmera e são mais introspectivos do que vinham sendo nos musicais da empresa. Vou tentar explicar. Em Frozen: Uma Aventura Congelante (Frozen, 2013) quando Elsa canta Livre Estou/Let it Go, ela o faz enquanto constrói seu palácio de gelo, correto? Esse momento fala sim muito sobre como a personagem se sente e tem diversas camadas, mas em Encanto viajamos para diversos lugares no tempo e no espaço para representar melhor ainda o que as personagens sentem sem necessariamente mostrar algo que está realmente acontecendo no mundo real delas, como em Estou Nervosa/Under the Surface, música de Luisa, onde viajamos por coliseus e diversos lugares representativos, o que é muito interessante e veio nos enganando esse tempo todo quando imagens do longa eram divulgadas.

Em entrevistas foi dito que depois de escolherem centralizar a história na família, decidiram incorporar elementos do realismo mágico na história, talvez tenha sido a razão para essa escolha para os momentos musicais. Realismo mágico, para quem não conhece o termo, é um movimento artístico latino-americano representado principalmente na literatura por nomes como Gabriel García Márquez, que era colombiano e Isabel Allende, nascida no Peru e filha de chilenos.

Claramente houve um esforço dos diretores/roteiristas de representar o melhor possível a cultura do país, algo que era muito importante para Charise, por exemplo, por ser filha de cubanos. Todos chegaram a visitar a Colômbia e usaram muitas referências no filme, como o Vale do Cocora, que serviu de inspiração para a vila, a floresta de Chocó para o quarto de Antônio, a Área Natural Única dos Estoraques para o quarto de Bruno e o Festival das Flores de Medelín para o de Isabela.

Mas acho que o que realmente impulsiona o filme e dá sua identidade são as músicas. Um trabalho minucioso e incrível de Lin e Germaine, que contou com instrumentos e musicistas colombianos, provavelmente ideia dela que fez questão de ter musicistas mexicanos em sua trilha pra Viva

E o que dizer sobre Lin-Manuel Miranda? Sua carreira definitivamente está em alta, esse ano já tínhamos visto mais dele em outros filmes incluindo uma animação com a trilha que fez para A Jornada de Vivo (Vivo, 2021) disponível na Netflix e além de já ter feito um lindo trabalho com Moana para a Disney, que eu inocentemente achei que ele não conseguiria superar, mas o homem se debruçou e estudou sobre a música colombiana e as personagens do filme e criou músicas que talvez ganhem premiações daqui a pouco. 

Além de ter dado um toque mais do que especial convidando intérpretes colombianos para as músicas que em minha opinião foram as melhores.  Carlos Vives, ganhador de 2 Grammys e 12 Grammys Latinos canta Colombia, Mi Encanto e Sebastián Yatra, 8 vezes indicado ao Grammy Latino canta Dos Oruguitas. A trilha sonora do filme já está disponível nas plataformas digitais, inclusive.

Eu assisti ao filme dublado no cinema e planejo assistir com o áudio original quando estiver disponível no Disney+ (na verdade planejo assistir até decorar as falas, mas isso não vem ao caso), mas pelo material promocional é possível perceber que ficou um trabalho de muita qualidade. O elenco de voz original do filme conta principalmente com atrizes e atores colombianos, inclusive contando com a participação de Adassa e Maluma, cantores colombianos, e quando não, são pessoas com alguma ascendência latino-americana.

A dublagem que está maravilhosa deu espaço para profissionais que ainda não tinham tido um papel de muito destaque e teve star talents também como Jennifer Nascimento, cantora que já fez algumas novelas da Globo como Malhação: Sonhos (2014 – 2015), Filipe Bragança que protagonizou Eu Fico Loko (2017) e gravou uma versão especial de Lembre de Mim/Remeber Me de Viva e Felipe Araújo, cantor sertanejo que gravou também a uma versão brasileira de Dos Oruguitas.

O curta que temos antes do filme, Distante da Árvore (Far From the Three, 2021) começa já nos preparando para o que assistiremos em seguida com uma história simples e tocante sobre conflito de gerações e sobre romper um ciclo, sobre talvez cair um pouco mais longe da árvore.

A história de Encanto em si é desde o início muito fácil de causar identificação, afinal quem não tem uma tia um pouco escandalosa, uma prima/irmã que é a perfeitinha, mas acima de tudo, quem nunca se sentiu como Mirabel? Solitária, excluída e inferior ao resto de sua família, quem nunca se enxergou como inútil, a pessoa que tem menos a contribuir ali? Sim, eu sei que você pensou naquele seu prime que passou em medicina nos primeiros lugares ou aquele outre que é advogade. Então sim, o filme é sobre Mirabel descobrindo como ela é especial do seu próprio jeito e que não precisa se comparar ao resto da família, mas também é sobre muito mais.

Descobrimos que não apenas nossa protagonista se sente pressionada como todos os outros membros da família também. Para Mirabel é difícil ser irmã mais nova de Isabela e Luisa, tidas como as mais excepcionais da família, mas que na verdade estão explodindo, Luisa pela pressão de sempre ser forte e Isabela de ser sempre perfeita. As duas têm números musicais ótimos para falar sobre suas angústias, ambas representam muitas características cobradas de mulheres, força e beleza, resiliência e gentileza.

Quando conhecemos Bruno, de quem não se pode falar a princípio, também vemos que nada do que o culpam é realmente culpa dele e sim das expectativas que as outras pessoas criavam em cima de seu dom.

Outra beleza de Encanto, é que tive medo do roteiro cair em alguns estereótipos, como Luisa ser forte e durona, mas para além disso, ela é sensível e delicada, todas as personagens tem suas nuances. Sim, Bruno é aquele tio estranho e um pouco esquisito, mas ele também é parte da família e tão humano quanto qualquer outro.

A verdade é que ninguém ali nunca é bom o bastante, existe uma ideia de perfeição que é inalcançável e todes estão sendo reprimides e pressionades por seus papéis na vila, de representar toda aquela comunidade e mantê-la viva. Assim acabam negligenciando seu bem-estar, sua felicidade e quem são de verdade, sendo quase sempre resumides a seus dons, presos à ideia de agradarem a matriarca da família.

Mas obviamente, ninguém fala sobre isso, muito menos um com o outro. Os Madrigal não são a família perfeita, mas nenhuma família é perfeita, as músicas vem nos melhores momentos para nos ajudar a entendermos isso.

Quando Dos Oruguitas toca, somos reapresentados a história que Alma conta nos primeiros segundos de filme, de como a família conseguiu seu milagre e como Encanto surgiu, porém agora com uma carga dramática muito mais forte que foi onde eu não consegui mais segurar as lágrimas. Só ali entendemos realmente pelo que Alma, a Abuela, passou, representando muitas mulheres que tiveram que reconstruir suas famílias e lares após uma grande perda, mas obviamente ela não passou por isso sem traumas, que por sua vez acabou passando para as demais gerações de sua família.

No total temos 12 membros da família Madrigal, claro que alguns têm mais espaço do que outros, mas ao final da minha sessão eu tive uma sensação muito forte que eu conhecia todos muito bem, o que me fez querer ver ainda mais de cada um.

Assim como Raya, Encanto é mais uma obra sem vilão, onde o verdadeiro antagonista na verdade são as próprias pessoas e os problemas que elas criam com suas próprias dores.

Temos aqui mais um filme com grande potencial para uma série derivada – cujos criadores já demonstraram interesse via Twitter – , afinal são 12 personagens originais que com certeza tem muito a oferecer e não posso negar que já imaginei um crossover com Elena de Avalor (Elena of Avalor, 2016-2020) que se passa em um reino fictício também na América Latina, e está disponível no Disney+.

Encanto trás uma lição que não é nova, muito menos inédita, mas é entregue com primor em uma história sensível e encantadora, como já diz seu nome. Nenhum tipo de relação é fácil, muito menos as familiares (sejam de sangue ou não), mas no final talvez uma conversa sincera e um abraço apertado ajudem a facilitar as coisas, mas será sempre um trabalho constante.

Um fato interessante de se mencionar é que em comemoração a estreia do filme a Disney apoiou, acredito que financeiramente, a Latin Grammy Cultural Foundation Scholarship Fund, uma bolsa do Grammy Latino para ajudar a espalhar educação musical entre jovens.

Encanto está previsto para estrear no Disney+ no dia 24 de dezembro, a famosa véspera de Natal, uma ocasião perfeita para juntar a família e assistir ao filme.


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