Mank – Capturando a Era de Ouro com primor

A arte de fazer cinema sempre foi algo que me fascinou desde que comecei a gostar de assistir filmes há uns 21-22 anos atrás. A curiosidade de saber como as engrenagens de uma produção funcionam sempre me deixaram viciado em assistir vídeos sobre bastidores desde quando comprava DVDs para assistir aos extras que vinham junto com o filme. Confesso que tenho dificuldades de assistir filmes antigos, principalmente aqueles feitos nas décadas de 40, 50 e 60, mas de alguns anos para cá, tenho assistido alguns e simplesmente me encantado com as técnicas, efeitos práticos e estilo de atuação desta época de Hollywood, onde tudo era mais desafiador e necessitava de ainda mais empenho para trazer a visão de seus criadores à vida.

Não é à toa que minha expectativa estava alta quando o diretor David Fincher anunciou seu novo longa, agora apadrinhado pela Netflix, sobre o cineasta e roteirista Herman Mankiewicz (interpretado aqui por Gary Oldman) sobre os bastidores da produção de um dos filmes mais aclamados de todos os tempos, Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Em Mank (2020), temos um drama que chama atenção em todos os aspectos, seja ele técnico ou em atuação, mas é um filme que requer muita paciência e investimento de seu público.

A primeira coisa que se pode dizer deste longa é que ele é uma narrativa de nicho. Dificilmente uma pessoa que não está muito familiarizada com este lado de Hollywood, ou não gosta muito de filmes antigos, irá realmente conseguir terminar de assistir suas duas horas e trinta minutos de projeção. E não estou dizendo isso como uma forma de exclusão, mas como forma de alerta, uma vez que o filme requer que você goste de cinema, política, diálogos mais longos e uma história que se desenvolve aos poucos, num ritmo mais lento, tecendo toda a dificuldade de Herman em terminar o roteiro de “Cidadão Kane” em tempo recorde, enquanto luta contra seus próprios demônios e vícios pessoais, representado pelo seu alcoolismo desenfreado.

O roteiro de Jack Fincher (pai de David) é fascinante, ainda que não seja fiel a tudo que aconteceu na história desta época, inserindo licenças narrativas aqui e ali. Não há dúvidas que ele consegue capturar bem a aura dos anos 30 e começo dos anos 40, seja nos diálogos, seja na forma como a história se desenvolve, regado a muitos conflitos políticos e de bastidores, principalmente envolvendo Herman, a MGM e o diretor e co-roteirista de “Cidadão Kane”, Orson Welles. 

Este é um filme bastante pessoal para David Fincher que, após quase seis anos sem fazer um longa, retorna para dirigir um filme escrito pelo seu falecido pai e que, por consequência, acabou se tornando um de seus filmes mais interessantes. Pode-se questionar se este é ou não seu melhor trabalho, mas com certeza não dá para negar a dedicação do diretor ao montar uma narrativa cheia de personalidade, com cortes longos, câmeras que conseguem privilegiar os cenários, fotografia e atuações mostrando a versatilidade dele numa trama completamente diferente de seus últimos trabalhos. 

O grande trunfo de Mank é sua capacidade de imersão. Do começo do primeiro ato, quando a narrativa começa a situar o expectador sobre seu protagonista e o universo a sua volta, passando pelas cenas externas no MGM e nas cenas de gravação de “Cidadão Kane” durante a primeira metade do filme, até chegar nas cenas das festas e dos jantares glamuorosos, com os chefões de Hollywood, o longa traz o público para esta Era de uma forma tão autêntica, que é difícil não se apaixonar e ficar curioso como conseguiram tamanha façanha.

Tudo isso se deve aos aspectos técnicos do longa, a bela fotografia de Erik Messerschmidt, toda em preto e branco e filmada em película de 35 mm, dá um tom de aspecto noir e envelhecido a obra. O design de produção é um deleite aos olhos, os efeitos visuais são discretos, mas são outro ponto interessante. A trilha sonora de Trent Reznor & Atticus Ross é deliciosa, com acordes pontuais e exageros técnicos característicos de produções daquela época, sem falar que dá todo um tom para a obra de forma única, graças também a uma mixagem e edição de sons muito bem-feita. A maquiagem e o figurino são outro ponto alto. Não foi à toa que o filme foi indicado a 10 Oscars alguns dias atrás.

Muito do que faz este longa algo a ser apreciado aos poucos e com calma, não é apenas os aspectos técnicos, mas as interessantes atuações que despontam na narrativa. É bom ressaltar que nem tudo aqui é um primor, mas o elenco é bastante afinado e entrega um trabalho bastante sólido. Amanda Seifried está ótima como a carismática atriz Marion Davies. Ainda que tenha pouco tempo de tela (um sacrilégio), a personagem é um poço de carisma, articulação e inteligência lembrando bem atrizes maravilhosas da era de ouro como Audrey Hepburn, Bette Davis e até mesmo a queridinha Grace Kelly. 

Outro ator que merece menção é Tom Pelphrey como Joe Mankiewicz, ambicioso e sempre apaziguador das confusões geradas pelo seu irmão mais velho, o ator é um poço de carisma e entrega ótimas tiradas. Temos também Charles Dance como o milionário magnata William Randolph Hearst sempre entregando uma boa atuação. No entanto, quem comanda o show mesmo é Gary Oldman, o longa só funciona como estudo de personagem, porque seu Herman Mankiewicz é ótimo, complexo e uma pessoa difícil de gostar. Oldman consegue transitar entre o cara genial na escrita, o amoroso marido da doce Sara Mankiewicz (Tuppence Middleton), para o escroto cineasta que adora desafiar nomes como Louis B. Mayer (Arliss Howard) e até mesmo Orson Welles (Tom Burke) em prol de suas ambições e ideias de roteiro mirabolantes.

Como o protagonista de Mank é uma pessoa difícil de lidar, mesmo com Gary Oldman atuando muito bem, fica difícil do público simpatizar mais com a obra, porém, isso não faz o filme ser frio e distante, mas com certeza mostra que Fincher teve alguns problemas em tentar balancear a dramaticidade emocional da obra e a complexidade de Herman como personagem de uma forma que sua audiência se identificasse. 

No final das contas, Mank é um excelente filme, feito com esmero, que pode sim dividir opiniões devido a forma como a história é contada, mas não há como negar que o longa captura de forma primorosa uma era de puro glamour e luxo de uma forma bastante fiel, com diálogos fluídos e argumentações que geram ótimas discussões entre personagens, sem falar que o filme ganha pontos por mostrar como a Hollywood mais suja e inescrupulosa funciona por dentro, terra essa capaz de produzir grandes sonhos, mas também capaz de deteriorar indivíduos e destruir vidas, sem falar que consegue também trazer várias mazelas políticas que muito lembram a tenebrosa era Trump, tornando esta obra atemporal e ainda mais peculiar, feita para ser revisitada uma vez outra pelos amantes da sétima arte.


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