As redes sociais chegaram com a promessa de conectar grupos sociais e democratizar o acesso ao conhecimento. E, de fato, isso aconteceu. Porém, quando falamos de comportamento humano nós erroneamente pensamos em algo racional, quando na verdade somos guiados pela emoção e fé, já que, o ser humano é um animal social que busca pertencimento de grupo e constantemente se compara com os outros para validar suas ações. Então, essa almejada conexão e acesso contribuiu para transformar as mídias sociais em um ambiente onde a pós verdade impera. Assim, na interação online os fatos e dados objetivos tem menos influência na opinião pública do que apelos a emoções e crenças pessoais.
Com isso, o ambiente online tornou-se ideal para fomentar fake news e teorias da conspiração. No começo, isso se restringia a fóruns de internet e grupos fechados, atualmente, essa técnica está tão avançada que afeta o futuro de nações inteiras, como o Brexit, o plebiscito para a independência da Catalunha e a eleição de Trump e de Bolsonaro.
Por muito tempo a internet foi considerada terra de ninguém, devido às leis de privacidade flexíveis, porém com a investigação da Cambridge Analitica documentada na obra Privacidade Hackeada (The Great Hack, 2019), descobrimos que existe todo um processo para criar, categorizar, direcionar e espalhar uma notícia falsa online.
Há todo um mercado de coleta e interpretação de dados unido a empresas de publicidade especializadas em mudança comportamental que utilizam um enxame de contas falsas para realizar o que for solicitado pelo cliente. Essas contas fakes primeiramente acumulam seguidores, assim, gerando engajamento para depois interagirem com perfis estratégicos, influenciando influenciadores. No processo também ocorre a invasão em massa de posts, disseminação de memes e a criação da botnet, uma rede de interação dos robôs que se misturam nas bolhas sociais. Desaparecendo completamente depois do estrago ser feito.
Diversas estratégias estão sendo testadas para combater a atividade online desses trolls e regulamentar o uso de dados dos usuários ao redor do mundo. No twitter, por exemplo, existe o @botsentinel que avisa quais hashtags estão sendo impulsionadas por contas falsas e também é o lar do Sleeping Giants, um projeto que expõe empresas que financiam, por meio de anúncios, sites propagadores de fake news.
Também existem iniciativas que lutam a favor da produção e acesso de conteúdos bem embasados cientificamente, como o Scihub, que disponibiliza artigos científicos originalmente pagos de graça e o Outline, que permite ao leitor acessar matérias de jornais bloqueadas pelo paywall.
Em tempos de discursos de ódio, o pensamento crítico e científico, juntamente com uma fonte confiável de informações é essencial para o desenvolvimento saudável das relações online.
Canais do youtube como o Atila Iamarino e o Canal do Slow estão focando nessa temática em seus conteúdos. Inclusive, eu já escrevi um texto aqui sobre como a divulgação científica é importante no combate às fake news.
Vale lembrar que no Brasil, foi sancionada a lei de proteção de dados e recentemente está em curso a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news. No nosso país a situação é mais complicada devido aos disparos em massa de conteúdos falsos no Whatsapp, onde a fonte se perde, sendo substituída pela relação de confiança entre o destinatário e a pessoa que compartilhou a notícia. Isso dá credibilidade a fake news, tornando-a mais difícil de se combater.
De acordo com a legislação eleitoral, difamar ao invés de se autopromover é proibido e é por isso que a venda de contas falsas é tão procurada e lucrativa. Sendo exatamente esse o trabalho do protagonista de Rede de Ódio (Sala samobójców. Hejter, 2020).
Rede de Ódio é um filme polonês, lançado na Netflix no final de julho. A obra dirigida por Jan Komasa conta história de Tomasz Giemza (Maciej Musiałowski), um estudante de direito que, após ser expulso da faculdade por plágio, é contratado por uma empresa para difamar online o político progressista Pawel Rudnicki (Maciej Stuhr).
Por ter uma temática contemporânea e ser um filme construído através de um protagonista forte, o longa consegue manter o público instigado, até o clímax do terceiro ato. A câmera externa ao ambiente transmite a impressão de vigilância constante realizada pelo protagonista, mas também o não pertencimento diante de suas relações pessoais. Existem também momentos em que o conflito é resolvido sem o telespectador saber como isso ocorreu, com a montagem deixando um vácuo proposital na narrativa que será respondido no meio de uma cena posterior, supostamente de menor importância.
Além do mais, assim como em Suicide Room (Sala Samobójców, 2011), o diretor desenvolve boa parte da trama em um MMORPG (jogo de RPG online), talvez, por esses ambientes online fornecerem o anonimato necessário para os assuntos discutidos pelos personagens, além de possibilitar a destruição de provas e a fuga da realidade com o uso de nicknames e a personalização de avatares. Isso tudo, ao mesmo tempo que é visualmente atrativo para a audiência.
De certo modo, o filme tem o mesmo aspecto perigoso de Coringa (Joker, 2019). Tomasz é um jovem ambicioso, calculista e sem escrúpulos que encontra no marketing digital uma forma de saciar o seu interesse por pessoas. Porém, ele também é um menino carente, emocionalmente imaturo e autodestrutivo que culpa a sociedade por todas as suas mazelas. A força motriz do personagem é o seu ressentimento com a elite acadêmica, sua frustração com um amor não correspondido e a busca por ser visto como igual pela elite financeira.
Existem diversas cenas que, de certa forma, tentam justificar as atitudes iniciais do protagonista, mas o roteiro também trabalha as questões pessoais de Tomasz. Ele desde o começo mostra o seu lado stalker, sociopata e manipulador nas suas relações sociais. Com o avançar do filme, depois de descobrir que a família que o menosprezou apoia o candidato alvo do seu departamento, sua busca insana por vingança, influência e reconhecimento usará até mesmo as táticas da extrema direita na produção de conteúdos falsos para a campanha negativa ter sucesso. Mesmo com a mensagem individual sendo questionável, Rede de Ódio acerta na mensagem coletiva que se propõe discutir.
Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Andrzej Duda na Polônia, Narendra Modi na Índia, Boris Johnson no Reino Unido, Jeanine Añez na Bolívia, Rodrigo Duterte nas Filipinas… o mundo está abraçando o conservadorismo e flertando mais e mais com a extrema direita. Sendo evidente a parcela de culpa das redes sociais.
Tudo nas mídias digitais é regido pelo algoritmo. O que você vê, como você vê, quando você vê, tudo é decidido de acordo com a análise do seu comportamento online. O problema é que esse mecanismo se retroalimenta independente da atitude usada para obter engajamento. Algo pode viralizar porquê teve muitos likes ou muitos dislikes. Independente do processo, toda interação gira em torno de emoções, e as emoções que movem o ser humano, e consequentemente ajudam na dispersão de ideias, são o medo e o ódio. Com isso, a extrema direita consegue radicalizar as pessoas que estão discutindo determinadas pautas online, fazendo com que elas tenham como último recurso a busca por um salvador e condene tudo aquilo que vá contra suas crenças pessoas do que é correto.
Esse movimento utiliza eufemismos para ser abertamente racista, machista e classista, além de idealizar um passado mitológico para vender uma narrativa de renascimento cultural, onde os problemas atuais da sociedade seriam resolvidos de formas simplistas, como simplesmente proibir a entrada de refugiados na Europa, ignorando o passado imperialista desse continente para com o restante do mundo. Sendo que muitos países africanos e do Oriente Médio estão nessa situação devido a séculos de exploração internacional. A série Stateless (2020 -), também da Netflix, retrata a complexidade emocional e burocrática desta crise.
Já que o que acontece nas redes sociais causa impacto direto no mundo físico é preciso aprender a lidar e entender o comportamento desse grupo radical, pensando que um ser humano de verdade estará por traz daquela conta, ao invés de um bot. O canal americano Innuendo Studios criou uma playlist no youtube chamada The Alt-Right Playbook que analisa o comportamento da extrema direita na internet, seus métodos e práticas. Todos os vídeos estão legendados em português.
Por fim, apesar de todas essas discussões, Rede de Ódio não trata a manipulação online de forma dualista. Existe a personificação dos ideais da extrema direita em um justiceiro virtual, porém ele é manipulado por Tomasz, assim como o político progressista . O protagonista jogar nos dois lados é algo muito simbólico. Seja você de esquerda ou direita, você luta pelo que acredita ser o jeito certo de viver.
Porém, a realidade é mais complexa do que gostaríamos. Dinheiro, poder e influência regem o rumo da nossa sociedade, e enquanto apenas reagimos ao que vemos online, sem analisar o porquê daquilo ter sido divulgado e quem ganha despertando tanto revolta, nós continuaremos sendo apenas uma engrenagem dessa máquina de ódio, regida por pessoas que jogam dos dois lados conforme os seus interesses momentâneos, sem se importar com a ruptura causada para chegar no objetivo desejado.
Quando um lado se radicaliza, o outro tende a adotar posturas mais fortes para revidar e, com isso, a única conclusão possível de uma ideologia de ódio é a violência.
Autodidata de Youtube e ex valentão da escola. Hilário adora mitologias em geral, astronomia e desenhos animados, mas seu passatempo favorito é irritar as pessoas, geralmente ele consegue. Sonserina orgulhoso, ariano, otaku reprimido e chaotic evil.