A divulgação científica em Cells at Work

Fake News é uma das pautas mais discutidas atualmente. Essa técnica de disseminação de informações falsas e teorias conspiratórias existe a anos, sendo muito utilizada na Guerra Fria e em ditaduras, em que era aplicada pelos governos numa escala industrial para manipular a população e faze-la acreditar naquilo que fosse interessante para os governantes.

Depois do acesso a informação ser democratizado com advento da internet, as técnicas de fake news foram evoluindo. Hoje em dia uma muito utilizada é a Firehose of Falsehood, cujo método é espalhar uma notícia falsa com fragmentos de verdade rapidamente nas redes sociais para que quando a retratação com as fontes averiguadas for publicada, ela seja dada como fake news, visto que as pessoas já teriam consumido e escutado tantas vezes a notícia falsa, que ela passa a ter mais credibilidade do que a apurada, é o caso das vacinas que causam autismo e do kit gay nas escolas.
Com esse panorama se agravando agências de fact-checking ganharam cada vez mais relevância, como a Agência Lupa e o E-Farsas. Essas iniciativas têm como objetivo verificar as informações compartilhadas na internet, mas esse trabalho leva tempo, podendo, as vezes, não ser suficiente. É por isso que o pensamento científico e crítico é tão importante, eles aumentam as chances de você questionar a informação recebida na sua timeline, ainda mais se ela for de encontro com o seu viés político e ideológico. Porém isso precisa ser construído e estimulado nas pessoas, com o uso da divulgação científica.

A ciência não pode ser vista como algo complicado, complexo e inalcançável pela população. Devido ao analfabetismo científico causado pela deficiência na educação básica e média de diversos países, os pesquisadores precisam usar métodos lúdicos e um linguajar mais simples para que esse conhecimento seja palatável para qualquer tipo de público, inserindo ele em livros como Sapiens e A Colher que Desaparece; em documentários, como Cosmos: Uma Odisséia no Espaço-Tempo (Cosmos, 2014 -) e One Strange Rock (2018 -); em podcasts como Scicast e Naruhodo; em canais de YouTube como Minutos Psíquicos e BlaBlaLogia; e em animes como Cells at Work (Hataraku Saibou, 2018 -).

Hataraku Saibou é um anime lançado em 2018 pelo estúdio David Production (JoJo). O desenho é baseado no mangá de Akane Shimizu e tem como premissa antropomorfizar, tornando familiar o dia a dia das células dentro do corpo de um ser humano. Esse conceito não é algo novo no audiovisual, sendo utilizado no filme Osmose Jones (Osmosis Jone, 2001) e em episódios de desenhos como Rick and Morty (2013 -) e Os Padrinhos Mágicos (The Fairly OddParents, 2001 – 2017).

A trama é composta por 13 episódios procedurais, onde acompanhamos o dia a dia de um glóbulo branco, cujo papel é defender o organismo de ameaças externas e a rotina de uma glóbulo vermelha, responsável pela entrega de nutrientes para células e órgãos. Essa é uma das liberdades criativas do anime, na realidade os glóbulos vermelhos atuam no transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos e os nutrientes são carregados pela corrente sanguínea, porém como essa característica do corpo é representada na obra através de ruas, a criadora resolveu atribuir todas essas funções aos glóbulos vermelhos.

O anime consegue retratar muito bem a reação do corpo quando algum vírus ou bactéria externa invade o organismo, literalmente parando o desenho por alguns segundos para explicar quem é aquele patógeno como ele atua no corpo, os sintomas causados e posteriormente como o organismo se livra dele. Isso tudo sem perder o ritmo da narrativa, transformando-se praticamente em uma mini aula de biologia repleta de sangue e violência.

Cada célula e processo do organismo é retratado utilizando a logística de uma cidade. Os linfócitos T, por exemplo, são mostrados como o exército da metrópole. Então acompanhamos o processo de formação dessas células desde a época de cadetes até se formarem na academia e serem direcionadas para os diversos “cargos” no corpo, funcionando como uma hierarquia didática das etapas do processo de defesa do nosso organismo.

Infelizmente, por ser uma representação da reação do corpo humano a determinado problema, com o tempo os episódios começam a adquirir uma fórmula, podendo se tornar um pouco repetitivos.
Entretanto, os capítulos 6 e 7 são um ponto fora da curva. Nesses episódios o anime abandona os arquétipos e estereótipos esperados de todo novo personagem apresentado e introduz um vilão com várias camadas e um subtexto bem interessante, o Câncer.

Além do desenho mostrar como células cancerígenas atuam no corpo, se disfarçando de células saudáveis e sugando uma grande quantidade de recursos, os episódios constroem o câncer como um antagonista poderoso, tendo um design muito inspirado em Akira e nos monstros de Cronenberg. O personagem recebe um background e por ter ideais compreensíveis atrelados a um discurso existencialista, consegue conquistar a empatia do espectador, mesmo sendo uma doença tão temida pelo ser humano.
Obras com esse valor científico devem ser incentivadas. O consumo delas pode abrir um novo leque de possibilidades para quem as assiste, mostrando que a ciência não é algo complicado.
Uma população que desconhece o impacto direto e indireto da ciência em suas vidas é uma população que não sabe dar valor as riquezas do seu país. Essa deficiência no Brasil fica evidente com o incêndio no Museu Nacional, o vazamento das barragens da Vale, a flexibilização das leis ambientais, a demarcação de terras indígenas e o constante corte de gastos das pesquisas acadêmicas.

A ciência não precisa que você acredite nela, é para isso que o Método Científico existe. Esse processo é bem simples. Depois de se observar um fenômeno é criado uma hipótese de como ele ocorre, então o pesquisador faz testes e experimentos para validar essa hipótese e quando um certo número de evidências são adquiridas, nasce uma teoria.

Esse processo é o mais confiável que a humanidade conseguiu botar em prática até o momento, pois uma hipótese precisa ser testável, isto é, qualquer cientista do planeta que decidir fazer um experimento com determinado fenômeno, deve chegar a resultados parecidos para que a hipótese vire uma teoria. Vale lembrar que a ciência está em constante mudança, então não existe uma verdade sólida, apenas teorias, pois nada garante que com o tempo novas tecnologias e conhecimentos possam mostrar um novo rumo para aquela hipótese.

É por isso que a astrologia e a homeopatia, por exemplo, são consideradas pseudociências, não é porque elas não existem ou não funcionam e sim porque os experimentos feitos com elas não chegam a um padrão de verificação em comum, assim não passando no método científico, logo, não podendo ser discutidas na academia até que seja possível provar de alguma forma a sua efetividade.
O método científico funciona e é confiável porque ele é democrático, podendo qualquer cientista fazer um experimento para provar, reforçar ou refutar uma determinada hipótese.

 

Por fim, o anime está sendo muito elogiado por doutores e estudantes de medicina pela sua criatividade na retratação simples do complexo organismo humano.
O mangá fez tanto sucesso que posteriormente ganhou um spin off chamado Cells at Work Black, onde retrata um corpo humano repleto de DSTs e doenças causadas pelo abuso de drogas. Consequentemente, esse derivado é bem mais sangrento e violento.
Cells At Work consegue equilibrar o entretenimento e as metáforas educativas muito bem, investindo na comédia e na ação ao mesmo tempo que torna informações biológicas palpáveis para qualquer tipo de público, assim, cumprindo o seu papel como uma excelente obra de divulgação científica.