Estamos sempre aprendendo. Se negar ao aprendizado é se negar a reconhecer a multiplicidade de conteúdos do mundo, assim como os múltiplos olhares para um mesmo mundo. A série brasileira original da HBO Todxs Nós (2020 -) conta a história de três amigos se aventurando pela vida em São Paulo. Com uma premissa aparentemente repetida, a série inova por abordar certos temas e trazer em si o protagonismo de um personagem não-binárie.
Primeiro parênteses a ser aberto no texto, visando a compreensão de qualquer pessoa que venha a ler. Pessoas não binárias são pessoas fora do espectro binário de gênero. Quando se fala em binaridade de gênero se fala de masculino e feminino, então as pessoas não pertencentes a essa binariedade são pessoas cujo gênero transborda (agradecimentos à Debbie Mota Muniz pela ideia do uso desse termo) para além dessa binariedade. As identidades não binárias abrangem diversos gêneros, sendo o não-binárie usado como um ‘termo guarda chuva’.
A história da série começa quando Maia (Julianna Gerais) e Vini (Kelner Macêdo), dois colegas dividindo um apartamento, recebem a visita surpresa de prime de Vini – Rafa (Clara Gallo). Rafa fugiu da casa onde morava com o pai, a madrasta e a irmã devido ao fato do pai não respeitar a identidade de gênero de filhe.
Segundo parênteses, tentando aqui não tornar isso muito exaustivo mas ao mesmo tempo tentando abrir a porta para certas discussões e tentar abordar o tema da série tão didaticamente quanto a mesma. Filhe, prime, linde, são adjetivos para se referir à pessoas não binárias cuja identidade pode não se alinhar com o feminino ou ao masculino. A própria série aborda o tema do uso de pronomes neutros de forma bem humorada e didática.
Todxs Nós foi uma série feita para ser didática, para ser educativa, para tocar em temas ‘novos’ para séries – especialmente no Brasil. As pessoas não binárias existem, elas são tão reais quanto qualquer homem ou mulher, elas ocupam posições mais variadas na sociedade. Como na própria série é mostrado, ter identidade não binária não exclui os demais privilégios oferecidos pela sociedade. Uma pessoa não binária branca, embora ainda oprimida por um cistema (termo utilizado por Viviane Vergueiro) social, colhe benefícios pela cor de sua pele.
É uma das cenas mais interessantes da série a citada acima, pois ela não é sensível e termina sendo bem real. Enquanto Rafa se julga mais oprimide e afetade do que as demais pessoas, é forçade a olhar para a realidade. A luta pela sua identidade, pelos seus pronomes existe, mas enquanto isso existem pessoas trans pretas na rua tendo de passar por situações de opressão mais pesadas de uma sociedade. Não é sobre desvalorizar uma luta, mas talvez reconhecer as demais. Essa cena faz o seguinte muito bem.
O mundo está longe de ser um lugar perfeito e inclusivo, vemos isso nos jornais todos os dias, ou talvez o fato de não vermos é o que possa nos afastar de certos pensamentos. Uma luta por um pronome é uma luta pela sua identidade, pelo reconhecimento de uma sociedade ainda extremamente excludente. Não se adequar ou se identificar a uma binaridade de gênero dentro de uma sociedade extremamente binária é algo difícil e até traumático.
Quando se fala de comunidade LGBTQ+ a própria série trata bem como muitos membros dessa sigla se sentem sobre seus privilégios. Vini, o primo de Rafa, usa bem sua posição de homem branco gay de uma classe social mais privilegiada quando se trata de julgar o movimento identitário da não binariedade. O mesmo expressa diversas vezes o quanto não se julga ter obrigação nenhuma de se educar, respeitar ou entender só por ser gay. Afinal, não é como se mulheres trans e negras tenham sido a razão da maioria dos gays cis terem conquistados seus direitos modernos.
Se tratando de transexualidade e não binaridade a série não só busca ser didática, apontando problemas do cistema e de como somos condicionados a pensar. É forçar uma ideia pedir respeito? Muitas pessoas homofóbicas assumem a ideia de que sim, é forçar uma ideia quando pessoas homossexuais e hetero-divergentes pedem pelo direito de casar, de andar de mãos dadas e coisas do tipo. Quantas pessoas cisgêneras não contribuem com a mesma linha de pensamento sobre pessoas trans (binárias ou não)?
A série é pioneira na sua forma de abordar questões de gênero e sexualidade, tanto para um público LGBTQ+ quanto para quem se encontra aberto a aprender. O foco desse texto visou ser sobre enaltecer a forma como a série fala sobre o assunto, ressaltando aqui também a presença de pessoas trans binárias e não binárias dentro da mesma. Assim como foi feita a série Pose (2018 -) do FX, Todxs Nós se comprometeu com a responsabilidade ideológica e também econômica de empregar essas pessoas e as fazerem parte do processo.
Várias pessoas foram testadas para o papel principal de Rafa, o mesmo tendo terminado com a atriz cis Clara Gallo. Mas dentro do elenco existem pessoas trans interpretando personagens cis, como Gabriel Lodi interpretando o chefe babaca da personagem da magnífica atriz Julianna Gerais. Mais de 30% dos personagens com falas da série são interpretados por pessoas trans, tanto binárias quanto não binárias. Dentro do elenco se destacam também Flow Kountouriotis interpretando X e Xad Chalhoub como Juno, referências não binárias do mundo real.
Wendi Yu diz em seu texto É Tudo Nosso: Um relato trans a partir de relatos de pessoas trans no YouTube que: “Existe sempre o risco, portanto, de que nossas narrativas não-hegemônicas possam ser apropriadas pelo cistema para perpetuar os lugares que constrói para nós.” Necessário assim cada vez mais quebrar essa perpetuação de história trans serem contadas sempre por pessoas cis e dar cada vez mais à comunidade trans de as contar. Que muito mais obras sejam feitas visando a visibilidade, empregabilidade e a voz das pessoas trans.
Se o viés discursivo sobre não binariedade não é um atrativo muito grande, saiba também sobre a série ser capaz de discutir assuntos como palmitagem, não monogamia, racismo, violência de gênero e muito mais. Todxs Nós trás personagens reais e levanta discussões importantes não possíveis de serem feitas sempre de forma dicotômica. A série dá muitas vozes a diferentes assuntos e busca trazer de algo responsável com o conteúdo feito. Não deixe de conferir a série, suas histórias, seus personagens e seus debates!
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.