Segunda Chamada – Educação e diversidade

Em 2019 a série Segunda Chamada de produção brasileira produzida pela O2 Filmes passou a ir ao ar pela Rede Globo, com uma primeira temporada de onze episódios a série conta a história dos alunos e professores da Escola Estadual Carolina Maria de Jesus. Sua primeira temporada foi escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini, a obra foi criada pelas duas e Jo Bilac. As tramas não contam apenas com problemas semanais a serem resolvidos através de um discursos de superação, mas também problemas derivados de uma sociedade marcada por desigualdade.

Pela ótica da professora Lúcia (Debora Bloch), retornando a lecionar na escola após um tempo afastada devido a morte de seu filho único Marcelo (Artur Volpi), a trama passa a explorar a relação entre professores e alunos. Uma relação já mostrada e explorada na televisão brasileira, mas aqui a ação é feita de forma crua sem fito de amenizar problemas sofridos por uma classe social prejudicada. Ao mesmo tempo a trama também trata os professores como sujeitos de suas próprias opressões e preconceitos, frutos de uma sociedade desigual. 

Através do núcleo de professores os personagens mostram facetas não muito exploradas dentro da realidade brasileira. A série consegue criar uma noção de que grupos oprimidos não são isentos de reproduzir diferentes formas de opressão, mesmo assim consegue desmistificar muitos preconceitos e estereótipos. Embora um elenco grande, aos personagens são garantidas suas chances de brilhar e mostrar suas múltiplas facetas constantemente. Através de episódios semanais, com diferentes tramas sobre os percalços enfrentados pelos alunos, a história se escreve de forma fascinante.

Para além das relações estabelecidas entre os personagens, a série explora relações de poder existente dentro da sociedade de forma macro e micro. Não é apenas sobre como uma pessoa preta e pobre sofre preconceito dentro da sociedade, também é como uma pessoa preta e pobre brasileira é capaz de exercer preconceito sobre estrangeiros refugiados. Uma mulher cis é capaz de exercer um preconceito devido a sua posição de privilégio a uma travesti. Indo além do bom e do ruim, a série constrói os personagens que são reais vítimas de uma estrutura pautada em preconceitos, sem os tornar isentos pela reprodução dos mesmos.

O retrato fiel traçado pela série consegue não apenas prender, mas também emocionar e chamar a atenção para os problemas de uma sociedade brasileira moderna. Problemas esses frutos de inúmeros fatores, por inúmeros poderes e opressões exercidos em cima de classes marginalizadas. Mesmo assim, a série nos trás personagens para além de estereótipos e os dá diferentes camadas. Além de tudo, é uma série com a capacidade de chamar atenção para os problemas e também a como reagir a eles. O micro pode não parecer muito, mas a capacidade individual de cada um ser uma pessoa melhor e quebrar uma estrutura de opressão e preconceito está ali. 

Um dos pontos fracos da série se torna os romances estabelecidos pelos professores, mas não todas as sua subtramas em particular. Por serem apenas os cinco, interpretados por Bloch, Paulo Gorgulho, Silvio Guindane, Thalita Carauta e Hermila Guedes, há uma presença mais regular de seus personagens ao longo da temporada. Isso significa um acompanhamento de suas tramas e trajetórias pelos onze episódios, mas os envolvimentos românticos criados entre eles parecem fracos quando sobrepostos à complexidade dos seus personagens. Um dos enredos mais interessante e também importantes é o de Sônia, personagem de Hermila Guedes, enquanto lida com um casamento marcado por violência e a superação do mesmo.

A inclusão de uma diversidade extremamente agradável de se assistir ao longo da temporada, de personagens múltiplos e complexos na forma dos alunos da Carolina Maria de Jesus. É através dos dramas desses personagens que as histórias são contadas, para além do dinamismo escolar. Dentre muitas espetaculares performances, duas atrizes marcaram a temporada interpretando alunas da escola. Teca Pereira interpreta Jurema, uma senhora de idade impedida de estudar pelo marido na década de 60 que volta a estudar buscando a educação. A doçura como a atriz interpreta a personagem ajudada por seus colegas e também professores, capaz de conquistar o apoio (não a permissão) do seu marido para se educar. 

Outra magnífica atriz é Linn da Quebrada, interpretando a travesti Natasha passando por provações constantes dentro e fora da escola. A série foi ao ar na Rede Globo e ter a história de uma travesti sem buscar objetificar seu corpo, mostrando que existem sim muitas possibilidades para elas é muito importante. Natasha é uma cobradora de ônibus, fugindo muito de um estereótipo perpetuado de que travestis só tem a prostituição como caminho. Seus enredo não é sobre dizer como a vida de uma travesti pode ser fácil, bem longe disso, é sobre mostrar a possibilidade de melhorar a vida mesmo com quase o mundo todo contra você, mas isso não deixa de ser uma tarefa bem difícil. Ter um enredo complexo e ao mesmo tempo tão real é algo digno de ser aplaudido. Em especial no momento de graduação da personagem Natasha, onde a Linn é permitida mostrar seus dotes de cantora. 

Mesmo sem tempo de explorar o quão boas são as atuações dos personagens dentro da série, existe a necessidade de ressaltar que não é por apresentarem um incrível trabalho na série que vão ter outras oportunidades. Esse parágrafo é mais uma crítica à indústria artística e como muitos artistas incríveis no Brasil terminam caindo no esquecimento. O talento não é tudo para a indústria, muito menos o esforço, e isso também termina sendo fruto das relações de poder e opressão da sociedade. Que os lindos rostos por trás desses personagens possam ser lembrados e também ter suas chances de brilharem interpretando outros personagens.

Sua primeira temporada se concluiu em Dezembro de 2019, com uma segunda temporada já confirmada para o ano de 2020. A série trabalha através de suas tramas com pontos importantes e necessários a serem levados a um público maior. Também busca ressaltar como em geral a importância de educação e dos educadores num país onde os mesmos não são tão valorizados.


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