Until Dawn: Noite de Terror – Bem, amigues…

…não deu. Until Dawn: Noite de Terror (Until Dawn, 2025) é um filme ruim. Ao invés de procurar palavras para descrever essa experiência, vou aproveitar o espaço deste texto para propor uma reflexão sobre cinema, videogames e narrativa. Acho mais frutífero do que dedicar linhas a falar sobre a cinematografia ruim, a direção péssima e o roteiro confuso e inexistente que essa obra apresenta.

Mieke Bal, em seu livro Narratologia: introdução à teoria da narrativa, afirma que as narrativas são um conjunto de elementos que formam um sistema. Para que existam, esses elementos precisam estar interligados e funcionar dentro de um esquema que pode seguir uma estrutura já estabelecida (como no cinema) ou propor uma nova forma de visualizar a história. No livro, ela cita O Pequeno Polegar, que pode ser lido como um conto infantil ou uma história de terror, ou ainda ser adaptado de maneira completamente nova, como uma animação ou videogame. Contudo, a essência do conto é mantida, mesmo com diferentes visões, elementos e características que cada obra de arte exige.

Esse pensamento de Bal parece fazer sentido quando relembro o conceito de tradução intersemiótica, proposto por Julio Plaza. Se nós — eu e vocês, leitores — pensarmos no cinema e no videogame como sistemas semióticos, uma adaptação seria um tipo de tradução entre essas linguagens, que são predominantemente visuais. Em um processo de tradução, é normal que algumas coisas se percam, mas a essência, aquilo que faz a obra ser o que é, permanece. E é justamente essa essência que permite ao público interpretar continuamente as transformações de signos, o que Plaza chama de semiose infinita.

Ao voltar meu olhar para Until Dawn: Noite de Terror durante a exibição, uma pergunta surgiu: o que faz de um filme um filme e de um jogo um jogo? Essa questão tem uma complexidade epistemológica imensa, e não pretendo respondê-la aqui, mas gostaria de destacar alguns conceitos e interpretações que tive ao assistir à obra. Um livro que gosto muito, A Narrativa Cinematográfica, de André Gaudreault e François Jost, propõe uma teoria e metodologia para entender a narrativa do cinema. Nele, os autores apresentam um conceito interessante: o mostrador.

O mostrador cinematográfico não é o narrador — muitos filmes têm um narrador, seja um personagem (principal ou não) que relata as ações ou uma entidade que comenta a trama. O mostrador, por outro lado, mostra ao público o que é essencial. Ele não é o diretor, mas uma instância que delimita o quadro. Um exemplo claro está em Os Fabelmans (The Fabelmans, 2022) (2022), de Steven Spielberg. Em uma cena, o protagonista conversa com o diretor John Ford, que explica como a linha do horizonte baixa ou alta gera interesse, enquanto a centralizada é monótona. Ao sair do estúdio, o protagonista caminha pela rua, e a linha do horizonte — inicialmente centralizada — ajusta-se sozinha para uma posição “interessante”. Esse ajuste não é feito pelo personagem nem pelo diretor, mas pelo mostrador.

Essa figura é essencial ao cinema. Outras linguagens artísticas têm equivalentes: nos quadrinhos, o artrólogo cria sentido entre os quadros. Já os videogames, muitas vezes vistos como “parentes” do cinema por seu caráter audiovisual, diferem por terem jogabilidade em vez de um mostrador. O que define um jogo e sua narrativa (de forma resumida) é o conjunto de regras do mundo ficcional. Com a evolução tecnológica, surgiram sistemas complexos de regras, gêneros e interações — e o controle é a ponte entre o jogador e essas regras.

Por isso, adaptar jogos para o cinema é tão difícil. A indústria cinematográfica tenta, desde os anos 1980, acertar nesse desafio, sendo a relação entre mostrador e jogabilidade o maior obstáculo: como transpor a tela do jogo para a do cinema?

Aqui, penso em duas categorias:

  1. Filmes que adaptam literalmente a narrativa do jogo, com pequenas alterações — Mortal Kombat (1995), Tomb Raider: A Origem (Tomb Raider, 2018), Uncharted: Fora do Mapa (Uncharted, 2022) etc;
  2. Filmes que expandem a base do jogo, contando novas histórias sem perder a essência — Final Fantasy VII: Advent Children (Fainaru Fantajî Sebun Adobento Chirudoren, 2005), a trilogia Sonic (2020-2024), Super Mario Bros. – O Filme (The Super Mario Bros. Movie, 2023) etc.

Estar em uma categoria não define a qualidade. O que faz uma adaptação ser ruim é não respeitar o material original.

E assim chego a Until Dawn: Noite de Terror, adaptação do jogo Until Dawn (2015) produzido pela Supermassive Games e a Sony, tratando-se de um exclusivo do PlayStation. No jogo, um grupo de amigos retorna a uma cabana nas montanhas um ano após o desaparecimento de duas amigas e irmãs do dono da residência, ele quem fez o convite. A jogabilidade gira em torno de escolhas com efeito borboleta: cada decisão do jogador pode levar (ou não) à morte dos personagens. A atmosfera é densa, os personagens têm carisma e profundidade, e todos têm motivações claras.

Como adaptar essa jogabilidade de escolhas para o cinema? A resposta da produção do filme foi um looping temporal, estilo Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993) ou A Morte Te Dá Parabéns (Happy Death Day, 2017). A princípio, parecia uma ideia interessante, mas a execução falhou. O primeiro problema são os personagens: sem carisma, e em um roteiro fraco. A trama, que tenta emular o jogo (com a busca pela irmã desaparecida), não tem pé nem cabeça. O looping, que poderia ser um complemento criativo à jogabilidade, serve apenas para gerar sustos aleatórios, sem regras ou contextualização.

Retomando Bal e Plaza, o erro central é não manter a essência da história e falhar na tradução entre sistemas semióticos. Exemplo prático: no jogo existem os totens, eles dão vislumbres de eventos futuros (sorte ou morte), ajudando o jogador a evitar finais trágicos. No filme, esse recurso — que complementaria o looping — foi ignorado. Isso não teria problema se o filme focasse em apresentar um material novo com sustentação narrativa, mas não o faz, então acabam surgindo outros defeitos (tomando cuidado para evitar spoilers do jogo, que é o que vale a pena conhecer): que incluem a superficialidade do mundo ficcional, uma vez que as criaturas não têm explicação (ao contrário do jogo), o vilão é definido arbitrariamente (no jogo, não existe um vilão claro, depende da interpretação e das escolhas), e as referências a outros títulos da Supermassive Games são vazias, sem cuidado com o desenvolvimento do universo ou das personagens, quase um fan service.

Adaptações de jogos para o cinema já provaram que podem funcionar em alguns casos, mas estão longe de ser consenso. As produtoras e a indústria do cinema precisam entender que um filme não venderá só por ter um título de jogo famoso — ele precisa de consistência narrativa, do domínio da linguagem cinematográfica e da jogabilidade. Se o foco for apenas lucrar (já que a indústria de jogos é mais rentável) e “pescar” jogadores para as salas de cinema, em vez de transpor a jogabilidade para a tela, filmes ruins como Until Dawn: Noite de Terror continuarão a existir.


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