Arquitetura e Cinema são duas das sete artes clássicas mais presentes no nosso cotidiano. E quase sempre, nos exemplares de quaisquer dessas duas artes, a importância das outras cinco – música, dança, escultura, pintura e literatura – se faz marcante em seu contexto geral. A arquitetura é a mais imediata e visível na exibição das diferenças entre épocas e culturas, e também a mais duradoura, já que a matéria preserva a memória por séculos; já o cinema é a síntese perfeita das outras seis, a forma de arte completa e apta a narrar histórias – fictícias ou não – de forma a atingir mais pessoas. E neste ponto já digo: O Brutalista (The Brutalist, 2024) não é um filme sobre arquitetura, mas é uma produção de cinema feita para durar séculos.
Como um parto, uma luz após a sequência de espaços escuros e angustiantes no porão de um navio, László Tóth (Adrien Brody) surge sob a Estátua da Liberdade, nascendo para sua nova vida nos Estados Unidos. O arquiteto húngaro fugiu da devastação causada pela Segunda Guerra Mundial e foi ao encontro de seu primo Atilla (Alessandro Nivola) na Filadélfia, um lugar que se destacava na época por seu papel no desenvolvimento econômico e político do país.
O primo, convertido ao catolicismo e rebatizado como Miller, é proprietário de uma loja de móveis e oferece ao protagonista abrigo e emprego. Logo são contratados por um herdeiro milionário para projetarem e executarem em segredo a reforma da biblioteca de seu pai, Harrison Van Buren (Guy Pearce). Mas a surpresa dá errado e junto com o xilique e golpe financeiro dados pelos clientes, problemas internos relacionados à intolerância da esposa católica de Atilla em relação à Lásló causam o primeiro conflito da trama e este acaba sem teto.
László neste ponto só tinha como companhia Gordon (Isaach De Bankolé), um amigo com quem dividia a dependência de heroína, abrigo precário e insalubres trabalhos. Até que Harrison o procura após conhecer o histórico profissional do arquiteto, paga o dinheiro que o devia e estabelece ali uma espécie de admiração, um esboço mal feito de amizade. Na mesma oportunidade lhe é feito o convite para uma festa na mansão de Harrison – onde foi feita a reforma da biblioteca. Já na festa, muita pompa, fumaça, exibição e pose de intelectualidade depois, chegamos no ponto crucial do filme: no topo de um verde monte, expondo seus convidados à longa caminhada e ao frio, Harrison publicamente propõe ao arquiteto a construção de um Centro Cultural em homenagem à sua falecida mãe, que será batizado com seu nome. Sem jeito de negar e desesperado por trabalho, Lásló aceita. Além de financiar o projeto, H. Van Buren oferece ao arquiteto residência e ajuda jurídica para trazer sua esposa Erszebét (Felicty Jones) e sua sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy) para os Estados Unidos.
Neste ponto dei uma pausa no longo filme e me perguntei: Milionários não são bonzinhos assim, certo?
Depois de já ter sido premiado no Globo de Ouro e no Bafta, O Brutalista passou a ser muito criticado pelo uso de IA no ajuste do sotaque do casal protagonista nas falas em húngaro. Eu particularmente acho uma besteira, já que foi pontual e para proximidade da realidade – contrário de outra produção concorrente que utilizou o recurso de forma indiscriminada.
Além disso, o filme também recebeu duras críticas de arquitetos, apontando erros na cronologia, uma vez que a Arquitetura Modernista já estava em evidência e era mais aceita no período retratado no filme (décadas de 1940 a 1970). Além disso, há quem alegue que os arquitetos que serviram de inspiração para o longa (um deles Marcel Breuer, arquiteto húngaro formado na Bauhaus em 1924, emigrou para os EUA em 1937, assumiu o cargo de Diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Harvard, formou uma geração de arquitetos americanos e projetou uma série de arranha-céus icônicos, tendo como parceiro, muitas vezes, seu ex-professor, Mies van de Rohe) não enfrentaram as dificuldades que o protagonista enfrentou. E outra vez eu digo que acho uma besteira pois, apesar de parecer em muitos momentos, a obra não é uma cinebiografia, portanto não precisa ser fiel as suas referências. Inclusive o nome “Lázló Tóth” é tão comum na Hungria quanto Antônio Silva é no Brasil.
Surgido no Reino Unido como resposta à escassez do pós-guerra, o Brutalismo é um estilo arquitetônico que marcou profundamente a produção da segunda metade do Século XX e é caracterizado pelo uso expressivo do concreto aparente, vidro e aço, com aspecto inacabado e puramente estrutural, sem adornos e com formas geométricas marcantes. O estilo muitas vezes é visto como agressivo, opressivo e até mesmo inóspito, ainda assim, sua força e impacto continuam a influenciar a arquitetura contemporânea e a suscitar debates sobre sua relevância histórica e estética. E assim como o protagonista, o Brutalismo não é bem aceito, carrega contradições, desperta sentimentos ambíguos, mas são marcantes e reinventam-se com o tempo, passando a ser admirados em algum momento.
No Brasil, no mesmo período retratado no filme, foram construídos importantes exemplares fortemente influenciados pelos princípios do Brutalismo. Nossos principais exemplares são institucionais e destacam-se por serem integrados com o espaço urbano, aproveitarem ventilação e iluminação natural, e terem usos que promovem a inclusão social.
São alguns deles:
- Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) | Affonso Eduardo Reidy | 1948
- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) | Vilanova Artigas | 1966-69
- Reitoria da Universidade de Brasília | Paulo de Melo Zimbres e Érico Weidle | 1972-75
- Sesc Pompeia | Lina Bo Bardi | 1982

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM)
No filme a arquitetura não é apenas um cenário, mas um espelho das tensões sociais, do conflito entre o capital e a genialidade, do poder do conhecimento e da criatividade frente a um ambiente hostil.
Com o título do longa, o aspecto da obra arquitetônica e as progressivas agressões da família do mecenas à Lásló e sua família, o diretor Brady Corbet (também indicado ao Oscar) deixou de forma explícita sua intenção: o choque ao que é estranho, o poder de domínio de um homem sobre o outro, as consequências de um estilo de vida destrutivo e a presença do trauma na arte. Mas mesmo em 3h 35min de filme, Corbet não deu espaço para Erzsébet ser alguém além da esposa adequada e amante renegada, que na intimidade vive como mais uma assombração rondando seu marido.
E sabe por que eu resgatei Erzsébet no final? Porque sinto que este filme foi escrito e depois virado do avesso. Digo: Erzsébet seria nossa arquiteta e Lásló seu marido doente. Ela a profissional diminuída, objetificada, violentada, envergonhada, mantendo da sua origem somente sua crença, marcada pela dificuldade em largar definitivamente seu algoz, pois a ele atribui seu ingresso – caro demais – para o recomeço. Mas a verdade é que não causaria choque, tampouco se destacaria num período ou país, pois esse perfil, se feminino, se encaixaria em qualquer contexto.
O Brutalista é grande e marcante, assim como a arquitetura brutalista. Mas é preciso sensibilidade para compreender sua essência e ir além da superficialidade. É uma obra possível de visitar várias vezes ao longo dos anos, e se possível sem lentes de aumento, sem guia, somente bastante tempo disponível e atenção. Mas estaria eu falando de arquitetura ou cinema? Você decide.
Por Crysna Mendes
Arquiteta, fã de vôlei de anime, amante dos filmes do Yorgos Lanthimos e mãe da gata laranja Cuscuz.
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