Sugarcane e Dahomey – Memórias dolorosas, mas essenciais

Cavar o passado para lá encontrar nossos traumas, pode ser extremamente doloroso, mas fingir que eles não existem e viver em um estado de negação eterna pode ser ainda pior. Precisamos entender essas dores, para que saibamos lidar melhor com elas. Não é esta uma das funções da História? O documentário Sugarcane: Sombras de Um Colégio Interno (Sugarcane, 2024) relata esse esforço por parte de várias comunidades indígenas no Canadá desde 2021, quando várias ossadas de crianças foram descobertas enterradas próximo a escolas públicas destinada a crianças nativas e administradas por membros da Igreja Católica. A partir disto uma investigação, coordenada por membros das próprias comunidades, passa a percorrer o longo e penoso caminho de descobrir o que havia acontecido não apenas com essas crianças como com os poucos sobreviventes que foram vítimas e testemunhas das atrocidades que aconteciam nessas instituições.

Dirigido pela dupla Emily Kassie – cineasta jovem, mas com experiência neste tipo de filme-denúncia – e Julian Brave NoiseCat, o filme foca em três caminhos diferentes acompanhando pessoas que de alguma maneira foram e ainda são afetadas pelos acontecimentos nas escolas: o próprio Julian e seu pai, Ed Archie, viajam em busca de respostas através de relatos dos idosos e no caminho acabam confrontando também a própria relação; a investigadora Charlene Belleau, ela mesma uma sobrevivente, e a jovem arqueóloga Whitney Spearing buscam pistas que tragam luz para este passado sombrio; e Rick Gilbert, também um sobrevivente e vítima do que aconteceu nas escolas, que recebe um convite para comparecer ao Vaticano para uma reunião entre o Papa Francisco e vários representantes das comunidades afetadas.

Percorrendo esses caminhos conseguimos sentir um pouco da complexidade desse tema e ao mesmo tempo a amplitude dele. A forma como parte do processo de colonização da América foi composto por um trabalho de aniquilação da dignidade de inúmeros povos nativos, através da tentativa de inserir as crianças dos povos originários à força em uma dita “civilidade” de base europeia e cristã, enchendo seus espíritos de culpa e vergonha, manipulando-os para que se vissem como “errados”. Isso por si só já é parte de um trauma que não é apenas de quem diretamente descende destes povos, mas de toda a humanidade e que continua a fazer vítimas e mais vítimas de uma violência que além de física é também cultural e espiritual. E aí chegamos a mais uma faceta desta violência: várias dessas crianças sofriam castigos, eram forçados a desaprender seus idioma de origem, suas crenças. Outras sofriam violência sexual por parte dos padres que administravam as escolas, o que inevitavelmente gerava gravidezes indesejadas em adolescentes e até crianças, e esses bebês na maioria das vezes eram descartados e até incinerados, e os que sobreviviam a isso, como Ed, sofriam rejeição ou passavam por lares adotivos que poderiam ser tão violentos quanto a escola. Os poucos que denunciavam estes crimes eram desacreditados e às vezes até punidos.

É uma dor, um sofrimento, que eu só posso imaginar, e até mesmo imaginar isto me causa uma angústia asfixiante. Mas além de tratar do trauma, o filme também trata de denunciar e responsabilizar as pessoas que ou foram os algozes e torturadores dessas crianças como as que tinham conhecimento do que estava acontecendo e ou calava-se ou encobria tais crimes. Esta responsabilização também é parte deste processo de lidar com o trauma, além de colocar em cheque essa relação de poder racista e preconceituosa que ainda hoje se impõe na sociedade. Muito além de uma simples vingança, a responsabilização é uma justa reparação histórica, é uma forma de dar um mínimo de esperança para as demais pessoas que passaram e passam por situações como estas.

Assistindo Sugarcane, foi impossível não fazer uma relação com um outro documentário que vi recentemente: Dahomey (2024), dirigido por Mati Diop. Aqui, Diop decide traçar um caminho diferente do que vimos em Sugarcane, mas que segue paralelo em direção a traumas que fazem parte de uma mesma conjuntura. Em Dahomey acompanhamos a jornada de “resgate” de 26 tesouros do antigo reino africano de Daomé, que estavam em posse dos saqueadores imperialistas europeus em Paris, e que finalmente retornam ao Benin. Através de imagens do processo de encaixotamento e transporte das peças que são muito delicadas, ouvimos uma narração de uma voz forte e misteriosa que remete às próprias entidades religiosas representados nos artefatos, como se a própria ancestralidade que aqueles objetos simbolizam estivesse expondo oralmente seu sequestro, encarceramento e retorno ao lugar de origem. Em seguida, somos colocados em meio a um debate de jovens estudantes beninenses que discutem o simbolismo daquele retorno das 26 peças, confrontando-se muitas vezes sobre os traumas que envolvem àqueles objetos de memória e o significado não apenas histórico, mas também político daquela ação.

E mais uma vez destaco a importância social deste tipo de filme, que mesmo sendo simples em sua produção, ainda que competentes, funciona como um alerta, uma ferramenta de divulgação de memória e de combate a nossa incapacidade e muitas vezes incompetência em agir para que o que aconteceu jamais se repita. Claro que um pedido de desculpas vindo das autoridades responsáveis ou a devolução do que foi escamoteado é pouco, ainda que seja algo, mas é apenas um primeiro passo, é necessário agir. Estes filmes, muito além de nos fazer encarar traumas, nos perguntam: você está agindo?


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